sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Segundos (5 de janeiro de 2008)

Segundos, poucos segundos.

Impossível que em tão pouco tempo algo possa ser mudado. Estratégias, jogadas, enfim, muito já havia passado e, agora, havia muito pouco tempo pela frente. Mas ele tenta. Intrépido, à frente de sua intrépida trupe, ele pede tempo, pára o jogo. A segundos do seu final.

Ele se dedica a traçar e explicar a próxima, e talvez última jogada, em sua prancheta já tão acostumada com estes momentos derradeiros. Ele a segura forte, ela entende. Afinal, faltam poucos segundos e tudo, incrivelmente, ainda pode acontecer.

O árbitro apita. Os jogadores têm que voltar à quadra. Altos, porém frágeis. Neste momento, em que o marcador lhes é desfavorável, fica nítida em seus rostos suados e cansados a pressão do tempo. Sempre ele. O tempo que impõe o ritmo dos treinos, que cobra a disciplina do descanso, que se mostra impassível quando seu time queria apenas mais alguns dias para treinar aquele arremesso especial. É sempre ele, o tempo. Que seja, então, nosso aliado.

Faltam poucos segundos, mas é o mesmo tempo pros dois lados. Vence quem tiver mais sangue frio, quem conseguir dominar a ansiedade, o nervosismo. Quem conseguir, nestes poucos segundos que faltam, fazer do tempo seu melhor amigo. Não há tempo para hesitações, pensamentos, receios. O árbitro apita e o time tem que reproduzir, tal qual uma tela de cinema, o que o técnico desenhou na já surrada prancheta. Como uma pintura, um filme talvez. Os jogadores se tornam atores e precisam apenas interpretar o roteiro, à risca.

Não há tempo – sempre ele – para passar a cena novamente. Arremesso lateral. O 9 entra no garrafão, se esquivando dos adversários. O 7 lhe faz o passe preciso. Apenas isso, uma cesta de dois pontinhos. Os mesmos dois que foram tão desperdiçados ao longo dos 4 tempos.

Como a vida. Que mais hora menos hora cobra aquele abraço não dado, aquele sorriso esquecido, aquela frase de amor que parecia piegas e desnecessária e que morreu antes de nascer. A vida cobra, como em ondas que sempre voltam, após passeios erráticos pelo oceano. E, agora, apenas dois, dois pontos separam aquela equipe, aquele time, aquelas pessoas e – porque não? – aquela família da vitória. A doce, esperada e sempre almejada vitória.

Como apenas poucos segundos podem nos separar do riso ou do choro? Não deveria ser permitido. Melhor seria que tudo se decidisse a alguns minutos do encerramento. Ou dá ou não dá. E ponto final. Mas existem as vírgulas, as reticências. Até os pontos e vírgulas, sempre meio indecisos entre uma pausa menor ou maior, não podem ser desprezados. São quase pontos finais. E “quase”, assim como poucos segundos, pode fazer a diferença no final.

Ah, agora sim, o final. O apito do árbitro soa como um gongo que definirá os próximos passos de um condenado à morte. Ou talvez a sirene que indica o final do recreio – aquele em que o menino, enfim, estava conquistando a garotinha amada. Talvez o despertador que implacavelmente soa toda manhã. Sons, sons. Que nos levam a outras paragens, que embalam um amor ou uma despedida. Sons.

Mas agora é o momento da ação. De isolar o som externo, o som dos aplausos, das vaias, isolar. Ouvir o som do próprio peito arfando, o som do coração explodindo no peito. E olhar fixamente para a bola, sempre ela. Que entra suavemente na cesta, que bate no aro, que não cansa de pular impulsionada por tantas mãos. Olhar para ela, olhar para o companheiro, mirar a cesta. Hora de colocar em prática algo simples, banal até.

E quantas vezes a decisão de nossas vidas não está em coisas banais?

Vai, aja, enfrente, atue. Você pode até perder, mas o plano era bom. E neste momento desafiamos o deus do tempo e percebemos que, inexplicavelmente, os segundos se arrastam, como em câmera lenta.

O arremesso é feito, perfeito. Mais um agora, novamente irretocável. E só nos resta assistir. Assistir ao espetáculo da bola laranja deslizando suavemente na cesta, como se tivesse vivido para este momento. Uma volta para casa, um relaxamento.

Dois pontos. Tão pouco, assim como eram poucos os segundos que faltavam. E como fizeram a diferença.

Sim (setembro de 2006)

Apenas uma palavra, três letras. Uma vogal envolvida por duas consoantes, confortavelmente envolvida entre o sinuoso “s” e o decidido “m”. Envolvida tal qual o som do “sim” soa aos nossos ouvidos quando sai de uma boca amiga, amada. Sai de forma tranqüila, expressando consentimento, aceitação, amor, entrega, paz.

São tantas as palavras já criadas, adaptadas em tantas e variadas línguas, novas e antigas. São tantos os diálogos, as trocas, os desentendimentos, idas e vindas. Mas nada é mais forte, decidido e acolhedor que o "sim”. Ele resume, expressa, define. Ele vence obstáculos, dissolve nuvens, aproxima caminhos.

Muitas vezes o colocam frente a seu oposto e pedem para que escolhamos. Um ou outro. Como se fosse possível, rapidamente, ir por aqui ou por ali. Por trás de um sim ou um não existe uma vida, uma trajetória, uma decisão irrevogável. Pelo menos não sem muitas custas.

Escolher o “sim”, dizer o “sim, ouvir o “sim” deveria ser a escolha natural. Não deveria haver dúvida. Mas ela há. Sempre haverá. E por trás dela um mundo de novas escolhas, novos caminhos.

Muitas vezes as palavras se disfarçam, trocam de lugar e nos confundem. É o “não” com jeito de sim e vice-versa. Há que ter astúcia para identificá-los, distingui-los, aceitá-los. É um jogo. E como todos os jogos encerra perigos. Cabe-nos aceitá-los. E dizer “sim”.

Não há emoção maior do que ouvi-lo dizendo”sim”. O rosto se ilumina, os olhos brilham, a boca abre ligeiramente, e o som sai de forma calma, como um carinho todo especial. “Sim”. Não é preciso dizer mais nada. Não há nada mais poderoso que isso. “Sim”. Para tudo, para nada, para o que se quiser. “Sim” é a rendição, o fim das dúvidas, o porto seguro, a certeza. “Sim”. Apenas isso. Uma palavra de três letras, em português, inglês ou francês. Continua sendo apenas uma palavra de três letras, mas cuja pronúncia, em qualquer idioma, traz o mesmo movimento, a mesma entonação, a mesma mensagem. Sim, yes, oui. O princípio e o fim. Não, sem fim, apenas... sim.

Paulista, Ipiranga, Interlagos (setembro de 2006)

Há certas emoções na vida que vêm carregadas de tanto significado que merecem ser escritas, eternizadas. Para além do fato em si. Vivi três delas: sentar em plena Avenida Paulista, cantar o Hino Nacional nas escadarias do Museu do Ipiranga e correr no Autódromo de Interlagos. Três atos que combinam completamente ou de forma totalmente oposta com o seu ambiente. Três atos inesquecíveis.

Sentar na Avenida Paulista
Era época de faculdade, eu estudava ali, em plena Avenida Paulista, na Cásper Líbero. Naquela noite pararam a avenida mais famosa de São Paulo, o centro nervoso, o cartão postal, o símbolo. Fecharam a Av. Paulista. Era uma manifestação, não lembro ao certo do que. Mas me sentei ali, em plena avenida, certa de que poucas vezes – talvez nenhuma – na vida viveria isso de novo. Era como se ao sentar naquele asfalto eu transgredisse a ordem natural das coisas. Era possível fazer um ato todo contramão e... tudo bem. Não havia carros ali, não havia ônibus, ninguém a buzinar porque o farol abriu ou fechou. Nada. Sem fumaça, sem pessoas correndo na faixa de pedestres. Apenas nós, muitos estudantes, de pé, sentados, gritando, rindo, expressando seu direito de ser. Sentei ali e pensei “Estou sentada em plena Avenida Paulista”. Eu consegui me abster do momento em si e registrar o insólito fato na minha memória. Sabia que aquilo era muito mais importante do que a manifestação em si, do que seus possíveis resultados. Sentar na Avenida Paulista era algo que eu contaria para meus filhos. Porque a Avenida sempre estará ali, com muitos, muitos carros correndo por ela. Mas eu parei esta avenida quando era adolescente. E só vale assim, parando mesmo. Nada de revéillon ou corrida de São Silvestre. Não tem graça parar a Paulista com o seu consentimento, com os carros avisados e suas rotas desviadas. Não. Parar a Paulista teria que ser assim mesmo, de repente, causando transtorno e movimento, interrompendo o fluxo normal dos acontecimentos, parando de fato o pulsar do paulistano. Não durou muito. Talvez uma hora. O suficiente para ser um momento inesquecível. Não lembro que manifestação era aquela. Mas lembro que sentei em plena Avenida Paulista.

Cantar o Hino Nacional no Ipiranga
Era véspera de 7 de Setembro. Estávamos lá, talvez 2 centenas de pessoas, autoridades, educadores, empresários, em uma manifestação pela Educação em nosso País. Pessoalmente, participava meio cética dos resultados práticos, mas, claro, torcendo por seu sucesso. O evento estava sendo televisionado e por isso ficamos todos em pé na escadaria do Museu. Tinha uma bela vista dali. Meu pensamento começou a viajar e voltei no tempo. Imaginei aquele lugar no tempo de D. Pedro, nada de prédios, um brejo talvez. Foi ali que ele declarou a independência do Brasil – no olhar mais apaixonado de nossa história, eu sei. Mas essa é a lembrança oficial que tenho dali. Então começamos a cantar o Hino Nacional. “Ouviram do Ipiranga às margens plácidas....” EU ESTAVA ALI! No Ipiranga, imaginando as margens plácidas. “De um povo heróico o brado retumbante...” Sim, um povo que permanece heróico, cada vez mais. “Verás que um filho seu não foge à luta...” Tive certeza naquela manhã de que nosso Hino era o mais bonito de todos. O mais poético, o mais emocionante. Chorei ao cantá-lo. Mais uma vez. Não era raro eu chorar numa execução do Hino Nacional. Em geral isso ocorre em momentos emocionantes – cerimônias, Copa do Mundo, Jogos de vôlei. Mas ali era a consagração. Sei que de agora em diante sempre que cantar o Hino Nacional lembrarei daquele momento, daquela visão. Do alto da escadaria do Ipiranga, imaginando as margens plácidas de um tempo passado. Uma manhã ensolarada, um País abençoado. E à espera. Ainda.

Correr no Autódromo de Interlagos
Ok, o local combina com carros. De preferência de Fórmula 1. Mas naquela manhã o autódromo fora dominado pelos corredores de rua, profissionais ou amadores que se reuniam em mais uma corrida da Corpore, 10 quilômetros. Era um desafio para mim. O máximo que já correra em uma competição. Mas a motivação, desta vez, não era a corrida em si, e sim o local. Autódromo de Interlagos. Nunca imaginei nem pisar na pista, quanto mais percorrê-la correndo! Pensar que era nesta mesma pista que os grandes do automobilismo se encontravam uma vez por ano. Que foi ali que o imortal Ayrton Senna tinha paixão por se consagrar. Corri cada metro daquele percurso imaginando os carros passando, o ronco ensurdecedor dos motores, as curvas cumpridas em velocidade, o público acenando. Corri cada minuto degustando essa sensação única, este privilégio de ali estar, em um local tradicional da cidade, reservado às máquinas mas que, naquele dia, permitia a nossa invasão. Uma invasão do bem, pela saúde, pelo bem estar e lazer. Mais um momento inesquecível.

De sorrisos, acenos, cumprimentos (19/8/06)

Ele estava sempre lá. Dia após dia, no horário do seu turno, o guarda da rua estava em sua guarita, a zelar pelas pessoas que entravam e saíam de suas casas, guardando-as. Mas ele ia além. Passou a ser caro também aos simples transeuntes ou pessoas que tinham como rotina passar de carro por aquela rua a caminho de seu trabalho, escola, lazer – eu entre elas. Ele estava sempre lá, sorrindo.

Sempre me surpreendeu como ele guardava os carros, as pessoas. Ficava me perguntando se ele sorria e acenava a todos que passavam e esboçavam um gesto em sua direção, conhecidos ou não. Tanto faz na verdade a resposta. Reconhecendo ou não as pessoas, ele as cumprimentava, acenava, dava um sorriso.

Só me apercebi de sua constância, anos a fio, certo dia em que passei pela rua em um novo percurso em minha vida. A rua era a mesma, mas ela me levaria, agora, a uma nova rotina, a um novo destino em minhas manhãs. Passei a ir ao clube duas vezes por semana neste período e tinha que passar pela rua, pela guarita, pelo guarda sorridente. Até então, tinha me acostumado a vê-lo, e receber seu caloroso cumprimento, apenas aos finais de semana. Mas – que surpresa – ele estava lá também pelas manhãs. Mas já fazia tanto tempo... Eu já devo ter trocado de emprego algumas vezes, viajado umas tantas outras, conhecido novas pessoas, me decepcionado com outras, feito dieta, lido livros. E o guarda lá, guardando a rua. Há quanto tempo mesmo?

Puxando pela memória, lembro que quando Arthur, meu sobrinho, era ainda uma criança de colo passávamos por ali e dizíamos “Olha o guarda, faz `positivo`”. E o Arthur, como toda criança sedenta de desbravar novas possibilidades, virava seu polegar para cima no internacional gesto de que algo vai bem, olhava pela janela do carro em direção ao guarda – meu Deus, qual será o nome dele? Nunca pensei nisso... João, Serafim, Antônio? –, sorria, e nosso carro passava. Muito rápido. Segundos suficientes, no entanto, para nosso guarda sorrir, acenar, deixar em nossos corações o sentimento quase surreal de acolhimento em plena cidade de São Paulo. Acolhimento anônimo, o que torna a situação quase fictícia.

Então, fazia muito tempo. Arthur já é quase um adolescente e nosso guarda continua lá, na mesma guarita, na mesma rua, com o mesmo sorriso e aceno – será que o Arthur ainda o cumprimenta?

Certo dia algo me chamou a atenção. Passava novamente pela rua, preparando-me para o tradicional sorriso e sinal de “tchau” que sempre lhe dava. (Sempre mesmo. Lembro-me de quando troquei de carro. E isso em nada alterou nossa troca. O guarda cumprimentou-me da mesma forma, como se enxergasse além do vidro, do insufilm, além das barreiras que o ser humano constrói cada vez mais a fim de se proteger... do que mesmo?). Mas ele não sorriu de volta. Após anos a fio, dia após dia, ele não sorriu. Como ele ousava quebrar essa corrente, esse hábito, esse meu porto seguro? Como assim? POR QUE ELE NÃO SORRIU? Eu não poderia ter lhe feito nada porque, afinal, eu só fazia cumprimentá-lo, sorrir, acenar, só coisas boas. Eu não lhe fiz nada, definitivamente. Mas ele não sorriu. Levei esse não sorriso comigo por várias quadras adiante. Estaria ele doente? – foi meu primeiro pensamento. E ficou lá essa idéia, amortecida em minha mente até o próximo dia, a próxima passada pela rua. E o guarda de novo não sorriu. Era a prova de que algo não ia bem com ele.

Preocupei-me. De repente me projetei em uma cena talvez mórbida, mas interessante. Projetei-me no enterro do guarda. Centenas de pessoas iriam, compartilhando com a família chorosa esses últimos minutos de sua estada na Terra. “Estranho” – pensaria sua esposa. “Não sabia que o (João, Serafim, Antônio?) conhecia tantas pessoas!” – e tantas pessoas diferentes, eu acrescentaria. “Diferentes” era a forma que ela encontraria para definir aquelas pessoas de roupas caras e carros idem que estavam no enterro de seu esposo. Centenas de rostos estranhos a ela, que ali estavam para agradecer a ele por, em sua vida, além de guardar a rua e as pessoas, fazer com que elas guardassem sorrisos, acenos, guardassem a impressão acolhedora de que o típico ambiente de cidade de interior depende mais das pessoas e menos dos lugares. Mas não. Graças a Deus ele não havia morrido.

Ultimamente passei muito pouco por sua rua – sim, a rua certamente era dele. A última vez, se não me falha a memória, ele não me cumprimentou. Estava a conversar com dois outros homens e não me viu passar. Prefiro pensar que ele não me viu passar a pensar que ele havia desistido de cumprimentar pessoas que, afinal, ele nem sabia quem eram e não tinha nenhum compromisso profissional de guardar.

Não gostaria de constatar que ele se decepcionou, se arrependeu, se sentiu bobo por ter doado anos a fio seu sorriso, aceno, afeto. “Não, não foi em vão, sr. João-Serafim-Antonio” – será que algum dia eu direi isso a ele? Pelo sim, pelo não, espero-acredito que ele saiba, no íntimo.

Preciso passar de novo, e urgentemente, pela rua. Preciso ter certeza de que ele está bem e ter de volta seu sorriso. E preciso cumprir a promessa que faço a mim mesma todo final de ano, de levar-lhe uma garrafa de vinho no Natal. Sinto-me, no entanto, estranha ao imaginar a cena de abaixar o vidro do carro e entregar-lhe o vinho, falar algo. Não combina com este contexto. Baixar a guarda, falar algo. Acrescentar proximidade e som a esta cena tira-lhe a magia e o encanto. Mas deixemos isso para próximo o Natal. Por enquanto me contento com o sorriso e o aceno. Espero que ele também.

O limite entre o desafio e o aprendizado (15/6/06)

A vida se faz de aprendizados, é o que todos dizem. Aprende-se com os pais, os irmãos, os primeiros professores, aprende-se com aquele coleguinha amigo, aprende-se mais ainda com aquele que nos maltrata, nos faz chorar. É assim. Ano após ano, vamos crescendo, amadurecendo, aprendendo. E um dia, depois das expectativas e vivências de uma faculdade, chega-se ao mundo dos adultos, começa-se a trabalhar.

Pode ser que você tenha sorte, e consiga um emprego em algo que goste, no que estudou, no que tem dom. De qualquer forma, inverte-se a lógica que existia até então. O horário agora é controlado mais do que nunca pelo outro, você tem regras a seguir, você deve se adaptar, seguir as diretrizes. Mais uma rica oportunidade de aprendizado. Emprego após emprego, empresa após empresa, um novo aprendizado. Você pensa até que já viu de tudo, que é um bom profissional, competente, sério, calejado; apesar da pouca idade.

Mas aí ele chega. E te desafia. Dia após dia. Você acha que não consegue, que o pedido é maluco, impossível até. Mas vai em frente, tem uma missão e vai dar conta dela. E dá. Não é incrível? E aí você acredita que – pronto – já fez um pouco de tudo, que depois dessa qualquer pedido será mais simples. Doce ilusão. Chega um novo job, uma nova missão.

Ele sempre te desafiando. Te ensinando. Quando vê, você já ultrapassou mais uma marca “impossível”. O que te faz ir em frente, a cada vez? O que te faz acreditar que, enfim, é capaz de fazer o que é pedido, esperado? Sem dúvida o desafio é motivador. Se ele te pediu isso, é porque no mínimo acredita que você pode. Logo você vai achar que não?

Mas há um ingrediente a mais: o exemplo. Nada mais convincente do que um chefe inspirador. Que, ao te desafiar, te ensina, te mostra um outro ângulo que você nunca tinha reparado que existia. E, quando vê, você está escalando uma montanha, indo em direção ao cume como quem faz uma calma caminhada. E, dia a dia, fica melhor, mais experiente, mais capaz. Ah, claro, e vai cumprindo o que ele espera de você. Algumas vezes até surpreendendo-o. As metas vão sendo cumpridas, os desafios vencidos, a empresa cresce. Mas tudo isso é conseqüência. Conseqüência de um movimento maior. Um movimento interior de auto-conhecimento, de aprendizado, que é impagável. Que MBA nenhum no mundo traz.

Mas nem sempre tudo é um mar de rosas. Crescer também dói. Revolta, cansa. Você olha ao redor e parece ser o único maluco correndo montanha acima quando há tantos deitados embaixo de árvores. Às vezes – muitas vezes, na verdade – você fica em dúvida. Não sabe se está dando o passo certo, falando a coisa adequada, passando o limite, entendendo a mensagem. Nessas horas, a montanha fica três vezes mais alta. Parece até que você nem começou a subir. E desanima.

Mas tudo passa. Ainda bem, passa. E, mesmo sem saber, foi ele quem veio em seu socorro. Fez um elogio, deu uma palavra de apoio, um novo ânimo. Ele sempre sabe, no fundo, quando você está prestes a parar. E sabe como te fazer retomar o rumo. Sabe como te fazer entender sutilmente o limite entre o desafio e o aprendizado. Você está aprendendo sempre, até quando pára. E ele sabe disso.

Há várias palavras que poderiam definir um chefe assim: mentor, guru, coach, líder. Cada uma com mil definições específicas. Acho todas dispensáveis. O que importa é você ter a sorte de encontrar alguém assim, independente de rótulos. Já tive muitos chefes, variados tipos. Mas sempre quis ter alguém muito bom para me guiar, me ensinar.

Marcelo, você é este chefe, é “ele”. Um exemplo. Nada ortodoxo, é verdade. Foge dos livros de regras – ainda bem. Confunde às vezes. Às vezes me deixa sem saber bem por onde começar, tamanho o desafio. Nessas horas, uma boa risada é a saída. Depois, tudo se aclara e acabo achando o caminho. Em outros momentos, você chega com aquela pergunta básica, aquela que a gente se tortura por não ter feito antes, tamanha a obviedade. E bastam uma ou duas perguntas para eu entender o roteiro todo.

Essa nossa sintonia, essa troca também é um aprendizado muito especial. Será que isso teria fim? Será que em algum momento eu pararia de aprender? Não acredito. Mas também não conseguiremos saber, pois nosso caminho foi interrompido. Talvez até voltemos a subir juntos outra montanha; espero que sim.

Mas eu não estava ainda pronta para trocar de guia. Como se faz? Isso você não me ensinou. E Isso eu não quero aprender. Rebeldia ou resistência, não me importa muito.
Acho até que pode dar certo lá. Como disse, já tive muitos chefes, variados tipos. Será mais um. Seja ele quem for. Até muito bom, quem sabe? Mas me fazer vivenciar de novo o limite entre o desafio e o aprendizado, ah, isso não vai ser tão fácil de acontecer de novo, eu sei.

Que pena. Ou que bom.

Que bom que vivi tudo isso. Continuarei a subir a montanha, prometo. Espero nunca chegar lá em cima. Que o cume sempre fique um pouquinho mais acima, me obrigando a continuar. Por que sempre há um desafio mais à frente. Você me ensinou isso. Obrigada.

Papai Noel (29/4/06)

Ele deveria vir em dezembro. E trazer o presente pedido. Ele. O Papai Noel. Afinal, não bastava ser uma boa garota durante o ano, fazer tudo o que lhe era pedido, não desejar o mal ou invejar alguém e pronto? Pelo menos foi nisso que ela sempre acreditou. Ela e todos nós. Não importa a crença, a idade. Chega dezembro e todo mundo fica um pouco mais esperançoso, um pouco mais sensível. E geralmente há um presente especial sendo almejado. Um carro, uma casa, um sorriso, um amigo. Isso também não deveria importar. Papai Noel não seleciona suas entregas por categorias, mas sim por merecimento. E foi por isso que ela tinha certeza – ou melhor, que ela desejava do mais profundo do seu ser, lá do fundinho de sua alma – de que seu presente deveria estar a caminho.

Era uma espera silenciosa, a dois. Uma espera um tanto mágica, um tanto imponderável. Porque neste caso, além do Papai Noel, a mãe natureza e um senhor que dizem ter barbas longas e morar no céu teriam participação decisiva no presente.

E chegou o mês tão esperado. Não deve ser coincidência o fato do Papai Noel vir em dezembro, após longos, felizes, tristes e difíceis onze meses. Ele vem ao final de um ano, no final do último mês do ano. Talvez seja para que, na remota hipótese de ele não trazer o presente desejado, a pessoa em questão esteja logo às portas de um novo ano, ou seja, terá mais 365 dias de esperanças pela frente, o que lhe ajudará a desviar o pensamento da tristeza sentida.

Mas esse não deveria ser o seu caso. Tanto ela desejou esse presente! Mais do que desejar, tanto ela lutou por ele! Bastava agora apenas esperar que entre as luzinhas pisca-pisca da árvore de Natal ele deixasse a encomenda. E pronto. Ela jurava que até estaria satisfeita por todos os próximos anos de sua vida. Não ia pedir mais nenhum presente em nenhum dezembro futuro. Afinal, este valia por toda uma vida. De sua parte, o Papai Noel estaria liberado para visitar outras pessoas, crianças, adultos, famílias, em qualquer canto deste vasto mundo. Ah, e o principal. Ela continuaria sendo uma boa pessoa.

E ele chegou. O Natal. O mês de dezembro. Só faltava o Papai Noel.
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O primeiro pensamento que ela teve não foi de revolta, de rancor, mágoa ou raiva. Não era para ser. Por algum motivo ela não recebeu seu presente neste Natal. Provavelmente Papai Noel tinha entregas muito mais importantes a fazer. É, de fato ela tinha bons sentimentos.

E chegou o novo ano. Mais 365 possibilidades de ser feliz. Ela já estava envolvida com as providências normais de um novo período; não esquecida, talvez conformada, com o desejo não atendido. Foi assim que ela descobriu algo até então inimaginável: Papai Noel podia se atrasar! Puxa, como ela nunca tinha pensado nisso antes?

Você acha que é simples rodar o mundo todo – que vive uma explosão demográfica -- em um veículo tão lento como um trenó? Até ele podia se atrasar! Algo lhe dizia que ele só entregava as encomendas atrasadas a quem não perdia a esperança, mas não podia afirmar. O fato é que ele veio. Trazendo consigo exatamente o que fora pedido. Um presente pequeno, uma luz de esperança, um fio mágico que a ligaria definitivamente ao futuro, mesmo quando aqui não mais estivesse.

Papai Noel trouxe a Luíza.

E daqui a alguns meses, em mais um dezembro, seus olhinhos estarão fitando as luzes pisca-pisca da árvore da sala. Maravilhados, aprendendo, sequiosos de ser. Os olhinhos da Luíza. Que estará no colo quente e seguro de seus pais. Que tanto a pediram, desejaram e esperaram.

Quem foi que disse que Papai Noel não existe? Ele até se atrasa!

Para Marita e Gaspar, que certamente acreditam em Papai Noel.

Crônica de uma lesão nada anunciada (2006)


Paciente. Incrível como de um dia para outro uma palavra que até então era apenas mais uma no dicionário ganha vida, ganha vivência. E salta do dicionário de forma imperiosa, tornando-se parte do seu dia a dia. Nunca tinha parado para pensar – ou sentir – sobre o significado da palavra “paciente”. Claro, entendia seu significado, como boa aluna que sempre fui, mas nunca tinha sentido seu significado, até sofrer uma lesão na panturrilha direita.

Ser assim tão específica sobre o lugar da lesão – por que dizer “panturrilha” e não só perna? -- também não é acaso. De repente você percebe o quanto faz diferença se a lesão foi no gastrocnêmio, no sóleo, na parte medial... De repente você se torna quase médico, tão ansioso está para sair da condição de paciente. Ser específica sobre o local da lesão é também uma resposta minha às inúmeras vezes em que fui perguntada sobre como estava o problema “no joelho” ou no “tornozelo”. Mas, ok, isso é outra história. As pessoas se acostumaram tanto a me ver lesionada (foram mais de quatro meses), que já nem sabiam mesmo onde tinha sido o problema. Cabia a mim apenas responder: “Não, é na panturrilha”...

Mas voltemos à palavra paciente. Sem recorrer ao rigor dos dicionários, o que me vem à mente sobre essa palavra é alguém que espera, que recebe uma ação de outrem, o agente. E é lá pelas tantas, quando você percebe que o que tem não é assim algo tão simples, que não vai passar com alguns dias de descanso, gelo e antiinflamatório, que a palavra se torna soberana. VOCÊ TEM QUE ESPERAR, SER PACIENTE. Sim, porque a palavra paciente ainda tem essa pegadinha: passa de substantivo a adjetivo rapidamente. Você é paciente – aquele que está na condição de ser tratado, de receber uma ação externa -- e tem que ser paciente – ter calma, esperar.

A pior parte do entendimento dessa condição é a constatação de que não há nada de diferente a fazer. Você não consegue abreviar o tratamento, você não consegue burlar o tratamento, você tem que apenas ser paciente, nos dois âmbitos da palavra. E ambos os âmbitos (como é rica essa nossa língua portuguesa, não? Duas palavras tão parecidas – “ambos” e “âmbitos” – são apenas isso, parecidas, sem maior compromisso e correlação, como tantas outras coisas na vida) têm suas fases.

Ser paciente quando o agente não se preocupa com você, não se dedica à sua recuperação, é o pior dos mundos. Além de você estar doente, quem te trata não lhe dedica atenção e – pior – não tem competência para te guiar no caminho da cura. Neste ponto, entramos no incrível mundo das clínicas de fisioterapia de beira de esquina, ou porta de cadeia, não sei qual é a melhor definição. Mas sei que elas existem. Muitas. E você só percebe que são assim, de novo, quando tem algo sério. Já me tratei e curei em duas delas no passado. Tudo bem, sempre tive a sensação de que os lugares eram apertados demais, com equipamentos velhos demais, de que as pessoas tinham conversas estranhas demais (os fisioterapeutas – ou melhor, as fisioterapeutas, eram sempre mulheres – assumiam o papel de vilões, que iam “judiar” dos pacientes, algo exatamente assim, infantil e numa relação de dominado-dominador que em nada fazia sentido para mim, que queria apenas ficar boa, e logo). Mas não conhecia outro tipo de lugar e, bem, tinha sido afinal indicada para estar ali por um médico ortopedista (essa categoria, inclusive, merece um texto à parte...). Mas desta vez não ia conseguir nestes lugares. Até tentei. E a dor só aumentava. Não podia fazer sentido. É neste ponto da história que começam a chegar os “anjos”. Cleise, o primeiro deles, me indicou o Centro de Reabilitação do Delboni “muito bom e perto da sua casa”. Ela já tinha me dito algumas vezes sobre o lugar. Tinha chegado a hora de ir.

Ok, consegui no Delboni ficar mais tranqüila no primeiro âmbito da palavra paciente. Estava em um lugar de primeira linha, com profissionais atenciosos, muitos recursos. Podia relaxar e receber como boa paciente a ação dos meus agentes de saúde. Mas o tratamento não evoluía. Minha perna – ops, panturrilha – continuava ali, doendo, presa, me segurando enquanto o mundo do vôlei girava lá fora. Alguma coisa estava errada, com a lesão, a tal da “contratura muscular” que tinha sido diagnosticada desde sempre. “Não preciso fazer um exame?”. Nossa, quantas vezes fiz essa pergunta, a vários e diferentes profissionais. E a resposta era sempre a mesma: “Não, isso é uma contratura, você tem que fazer isso mesmo, fisioterapia, exercícios etc.”.

Neste ponto, o segundo anjo da história já estava comigo: Miriam, a fisioterapeuta-amiga-companheira. Lembro bem quando ela começou a me tratar. Foi no meio de uma sessão, quando o fisioterapeuta que tinha feito minha avaliação e estava me acompanhando há uma semana simplesmente sumiu da sala. “De novo, não, pensei. Será que aqui vai ser também um troca-troca de pessoas?”. Não foi. Miriam, uma profissional recém-formada que certamente daria aula em várias feras da profissão, desde aquele momento agarrou a causa da minha cura, e vem se dedicando a ela além do que se espera do seu papel. E isso, tenha certeza, causa no paciente muito mais impacto positivo do que milhões de sessões de ultrasson. Os médicos tinham que entender isso definitivamente: a importância do fator humano no tratamento. A importância de um sorriso, uma atenção, um telefonema. O ser humano é todo emoção. Ainda mais quando se encontra fragilizado, privado de uma de suas condições básicas, no meu caso o movimento.

Resolvi então fazer um exame. Tudo bem, não precisava, todos diziam. Mas faria mal?... No fim, fiz 3. Dois ultrassons e uma ressonância. Do primeiro, a “boa” notícia: “Você não tem nada. Não precisa nem fazer ressonância”. Não era possível. Fui para a ressonância. A essa altura já tinha até voltado a treinar, com calma, e as sessões de fisio estavam bem intensas. A cara do médico que fez a ressonância não era nada boa: “Tem uma lesão profunda, e provavelmente rompimento de fibra”. O quê?...... O segundo ultrasson confirmou. E aí... pára tudo novamente. “Você é louca? Não podia estar treinando. Você não pode fazer nenhum exercício!”. Mas péra lá... não era uma contratura? Não, não era: rompimento no gastrocnêmio medial. Nada de quadra e pelo menos 4 semanas de tratamento.-------------------------------------------------------------------------------------------------------

Não sei se os traços acima passam o sentimento que tive ao ouvir isso. Um vazio, um momento suspenso, um “deixa eu ver se entendi”. E no clube as meninas treinando, formando o time, se preparando para o campeonato. E eu, no meu novo-velho time do Banespa, sem condição de participar disso. Não como eu queria, claro. Da primeira vez que fui ao treino após a notícia, saí dez minutos mais cedo; ficar lá por que se eu não podia jogar mesmo? E fui chorando da quadra para o vestiário. Isso tudo tinha que ter alguma razão, que um dia, espero, eu entenda.

Mas vamos lá, exercitar a segunda dimensão da palavra paciente. Vamos ter paciência, seguir o tratamento, acreditar que “pelo menos agora a gente sabe o que é”. E recomeçar. Talvez pela terceira vez em três meses. Três meses de sessões diárias de fisioterapia no horário de almoço. Anjos neste caminho não faltaram. Como a Anelisa, que providenciou o almoço na minha sala, prontinho todo dia, apenas me esperando. Como a atendente do CDB – clínica em que fazia o ultrasson -- que percebeu minha angústia em tentar marcar um exame quando não havia mais horários e me deu o telefone da supervisora. Exatamente no mesmo momento em que eu pensava em pedi-lo.

Também não faltaram no caminho momentos engraçados, figuras engraçadas. Como o dr. Alexandre, que fazia meu ultrasson. Com suas razões próprias e um certo mau humor que julgo nato, ele não teve pruridos em dizer “Eu trato coisa muito mais séria, tumores, isso é rotina...”. “Na perna de quem tem não parece rotina doutor...”, foi só o que consegui responder naquela posição absolutamente passiva, deitada, com aquele aparelinho revelando a cada passada sobre meus músculos o que seriam minhas próximas semanas. Mas na consulta seguinte, talvez convencido de que minha cura era algo realmente importante para mim, dr. Alexandre foi mais próximo, me deu dicas para a viagem de avião, certificou-se de que eu tinha entendido. Na consulta seguinte, até se lembrou de mim espontaneamente. Bingo!

Outro momento inesquecível foi ter me visto a partir do outro, no caso um dos fisioterapeutas do Delboni. “Vê se não exagera na viagem, porque você é meio esquisita, né? Sente dor e se exercita!”. Como assim esquisita, Wagner? Mas, quer saber? Acho que sou mesmo. Já dizia Caetano que de perto ninguém é normal. Acredito nisso. Tanto que estou aqui, num Domingo, ainda com um pouco de dor, mas escrevendo uma crônica como se já tivesse encerrado o tratamento porque quero voltar às quadras essa semana. Vou voltar, se Deus quiser. Esquisitices, você sabe. Mas o que é a vida senão uma seqüência de momentos estranhos, felizes, tristes e... esquisitos?

Obrigada desde já à minha equipe de anjos do Delboni, liderada pela anja-mor-amiga Miriam: Le (que foi acordado às 4h da manhã pela Miriam porque ele iria me tratar no sábado. Exagero, Le, eram apenas 22h...), Wagner (o fisioterapeuta sambista mais esquisito-engraçado que conheço), Tati (uma graça de atenção, nas poucas vezes em que ficamos juntas), os estagiários-ponta firme Paulinha, Le, Karine e, claro, o onipresente Sazaki, uma referência e uma segurança para os pacientes (Sazaki, vê se vai mais ver os pacientes do horário de almoço!).

DIÁLOGOS COM MINHA MÃE (2004)

“Nenhum filho deveria ver sua mãe na UTI”.

Este foi o pensamento que mais marcou todo o período em que acompanhei a doença de minha mãe, nas duas (e, espero, únicas) internações. De um dia para outro você vira adulto – mesmo. Tem que deixar seus medos de lado, buscar forças onde nem sabia que tinha, respirar fundo, rever estereótipos, heróis de infância, mitos e desejos. Você tem que cuidar da sua mãe. Assim, sem aviso, sem preparação, sem ensaio. E é aí que você se vê indo em frente, assumindo, engolindo o choro, CUIDANDO DE SUA MÃE. É a inversão da ordem natural das coisas. É muito difícil. Mas você faz. E vive uma experiência até surreal. Foi como se naquele período vivesse em um mundo suspenso, paralelo, fora do mundo real. Via minha irmã, meu pai, meu irmão, todos meio sem rumo, sem saber como agir, cada um se isolando na sua dor, na sua forma de luta, no seu consolo e refúgio. E ela lá, na cama do hospital, como que esperando toda essa confusão passar, apenas assistindo, uma vez mais ausente, a outra mais próxima, mas igualmente fora de alcance, desesperadoramente fora de alcance.

E foi numa dessas noites em que iria dormir no hospital (Como assim “dormir no hospital”? Como assim “ficar de olho para ver se ela precisa de algo?” Como assim “chamar a enfermeira se o soro sair ou acabar?” COMO ASSIM? Eu não sei fazer isso, EU TENHO MEDO, eu quero que o tempo passe rápido e que meu pai, irmã, irmão cheguem logo...) que tive um diálogo inesquecível com minha mãe. Inesquecível porque até agora não sei definir em que mundo de fato ela estava, em que mundo sua alma estava. Inesquecível porque ela estava sem censura, sem travas; inesquecível pela sapiência, pela profundidade. Inesquecível. Na verdade, foram duas conversas. Provavelmente, a dor não me deixa lembrar com clareza exatamente em que situações se deram, mas isso não tem muita importância. Lembro do conteúdo, da emoção, do momento. E isso certamente basta.

Primeira conversa
Foi numa “troca de turno” entre meu irmão e eu (isso é lá jeito de chamar isso? Mas a dinâmica é exatamente essa. Um fica, outro chega, “rende”, olha com a dor mais profunda do coração para a mãe querida que ficará lá, na cama do hospital, até quando um médico-herói-salvador-deus dê a bendita alta e sigamos todos de volta para a nossa vida). Ela estava acordando e estava reluzente. Sorria como se não estivesse na cama de um hospital, tinha um olhar perdido no teto, como a olhar algo que mais ninguém conseguia ver; como se nada tivesse sofrido, como se estivéssemos um uma praia, um campo, enfim, em um momento feliz em família. Começou a contar do sonho, falava de forma atropelada, juntava os assuntos, mas estava feliz. Meu irmão de um lado da cama, eu do outro, os dois segurando em cada uma das mães (não, Sonia, é “em cada uma das 'mãos'”. Mas escrevi “mães”—será ato falho? Apaguei, mas reescrevi. Sim, naquele momento tínhamos duas mães ali. A de meu irmão, com toda a vida que viveram juntos, anos a mais que eu, com seu filme próprio e exclusivo. E a minha mãe, cujo roteiro certamente era diferente. Quem diz que as mães e os pais não são nem podem ser diferentes deve ter algum problema grave de auto-estima. Ninguém é igual a ninguém, não pode ser tratado igual nem ser gostado igual. É só. Que libertemos as mães e os pais da obrigação de amarem igual!). Então, estávamos um de cada lado, segurando em cada uma das mãos-mães.

Ela conta da sua promessa, olhando fundo para meu irmão: “Eu pedi ao Pai que me levasse quando você estivesse bem, estabilizado...” – e ela não precisou completar a frase, era como se dissesse-pensasse: “E agora eu já posso ir”. E meu irmão, chorando, dizia que “não, ainda falta muito”.

Ela olha para mim e diz que sonhou com sua mãe, minha avó. Eu digo que ela ainda não pode ir; eu ainda nem tive meus filhos para ela conhecer, cuidar... E ela diz que minha filha já está querendo vir, que “virá em nome da minha avó; que eu sou muito parecida com minha avó”. Pai amado, o que isso quer dizer? Que mistérios a vida e a morte encerram? Que mistérios esse momento entre a vida e a morte encerra? Não sei, mas os vi naquele hospital. E disse a ela, naquela hora, depois, não sei mais, que minha filha chamará Isabela, em homenagem às avós: Isolina, mãe dela, e Itália, avó do Elmo. Dois “is” = Isabela. Quando já estava em casa, perguntei a minha mãe se ela se lembrava dessa história dos nomes. Ela disse que não. Mas sei no íntimo de mim que, sim, ela gravou bem essa conversa, mas em um outro pedaço do seu ser. Em sua alma, talvez. Mas ela sabe, sim, ela sabe. E sei que isso a acalentou no hospital. Saber que a Isabela viria um dia, e que ela precisava estar viva para conhecê-la!

Obrigada meu querido Elmo, obrigada minha vida, por me dar essa idéia, por pedir para contar isso à minha mãe. Por trazer isso às nossas vidas. O Elmo não foi ao hospital. Não fisicamente. Mas estava ali comigo, com ela, em cada momento. Como naquela tarde em que saí do hospital e liguei para ele da marginal, dirigindo. Tinha a nítida impressão e sensação de que se voltasse à noite e ela ainda estivesse da forma como a deixei – apática, entregue, sem vida – ela estaria próxima mesmo de seu fim. Pedi a ele que rezasse, que era sério e que pela primeira vez em toda essa história eu estava de fato preocupada. Liguei depois para o médico. Era a primeira vez que falava com ele, era sempre minha irmã que ia às consultas com ela. Que conversa foi aquela? Que médico era aquele? Como uma pessoa com aquela postura pode se chamar de médico? Não vale reproduzir o que conversamos, vale apenas para dizer que a última coisa (deveria escrever “pessoa”, em vez de “coisa”. Outro ato falho?) a que recorremos, confiamos, contamos em todo o processo foi uma pessoa que foi paga, anos a fio, para exatamente cuidar da minha mãe.

E voltei à noite. E ela estava melhor. Fui recebida por minha irmã animada, dizendo que ela já tinha até se levantado. Enfim, aquela noite foi o começo da recuperação. Certamente perdi algo importante que aconteceu naquela tarde. Talvez algum diálogo entre minha irmã e ela, talvez alguma lembrança que a fez querer viver, talvez um sonho, uma visita, um telefonema, talvez Deus. Mas sei que respirei aliviada naquela noite. Passamos o limite do medo, da certeza de que poderia não ter volta. Voltamos. Ela voltou. De onde nunca deveria ter ido de fato.

Segunda Conversa
Este segundo momento foi o oposto do primeiro. Da luz para a tristeza. Da esperança para a revolta. Em comum, a mesma não-censura, apenas. Foi em uma noite que iria passar com ela. Cheguei no começo da noite e estavam no quarto com ela meu pai, meu tio e minha tia. Os três conversavam, TV ligada, aquela conversa que procura ser normal já que nada mais o é. E minha mãe inerte na cama, olhos fechados, dormindo? Eles me cumprimentam, falamos um pouco, se despedem. Despedem-se também da minha mãe, mas ela não responde. Dormindo?

Após aqueles minutos “eu comigo mesma”, em que sei que tenho que me investir da força que sei que não tenho para passar mais uma noite no hospital, apenas eu e ela, cuidando de minha mãe, me aproximo da cama. Pergunto se ela está dormindo. Ela diz que não, mas “que não quer conversar hoje”. Ela sempre conversava muito comigo. Minha irmã por vezes ficava chateada, pois foi a que mais ficou com minha mãe e elas não se falavam tanto assim. Nada lógico, como nada é lógico nesta situação. Mas dói, claro. Como tudo dói nesta situação.

Eu insisto. “Por que não quer falar...?” Aos poucos ela começa a se soltar. E não é ela que está falando ali. É algum pedaço da minha mãe que ficou preso em algum lugar, não vivido em algum lugar, talvez até inexistente mesmo, fruto dos remédios, da dor, da tristeza, não sei. Mas não era minha mãezinha. “Hoje eu descobri quem é o seu pai”. O que??? Que frase é essa meu Deus?... Meu pai tinha passado a noite pela primeira – e última – vez com ela. Foi um erro. Muito difícil para os dois. Se para os filhos já é, fico imaginando para o companheiro que dividiu a vida com ela. Que a conheceu moça, linda, que a conquistou, que a namorou, que a pediu em casamento, que viveu as dificuldades e os prazeres de uma vida a dois, enfim, eles têm uma vida juntos. Nós, filhos, somos fruto dessa vida. Há uma diferença, um mar a separar os sentimentos. E eles se confundiram nesta noite. A ninguém caberá saber e entender o vivido nessas horas, apenas aos dois. A mim, veio o relato, num contexto muito confuso. “Ele é machista. Ficou brigando comigo.” Ali minha mãe era uma criança. Estava marrenta, contrariada. Eles de fato discutiram, tiveram uma noite conturbada. E ela reteve provavelmente da forma mais instintiva possível – algum psicólogo haveria de explicar. Conversei muito com ela, acho que ajudou. Disse o quanto meu pai estava sofrendo, o quanto ele não conseguia vê-la naquela situação, o quanto ele precisava dela bem. Acho que aos poucos fui trazendo-a de volta seja lá de onde ela estivesse.

Falamos de minha irmã também. Disse que minha irmã ficava triste porque minha mãe não conversava muito com ela, apenas comigo. A resposta veio de novo da mãe-criança: “Sua irmã é muito brava, briga muito comigo. Mas ela é boa demais para mim, cuida de mim”.

Falamos de meu irmão, de meu pai. Ela pediu que eu cuidasse deles, que não brigássemos, que eles são muito bons.

Conversamos. Por mais difícil, marcante e estranho que tenha sido esse diálogo, foi um diálogo, ela falou. Um cenário completamente diferente do que encontrei quando cheguei. Minha mãe em posição fetal na cama, quieta. Dormindo? No dia seguinte, minha irmã veio me “render”. Mais para o final do dia, liguei para ela, que estava toda feliz: “Mamãe conversou bastante hoje!”. Deus é Pai! Ela escutou o que conversamos. Em algum lugar ficou gravado e ela reagiu!


A UTI
Assim como nenhum filho merece ver a mãe na UTI, nenhuma UTI merece ser relatada em nenhuma linha. É dor demais. Mas fecha um ciclo. Vamos a ele.

A dor começa nos limites. Você não pode mais ir e vir, ver sua mãe na hora que você quiser e puder. Não, existem os temidos “horários de visita”. Todos os familiares das pessoas internadas ficam lá, no corredor, olhando sem esperança para uma porta. Esperando essa porta se abrir. A porta que separa famílias, temporária ou definitivamente. São olhares cúmplices, dores compartilhadas silenciosamente, o medo. São todos crianças, independente da idade. Fragilizados, sozinhos, com medo. E a porta se abre. A ânsia por entrar lembra – desculpe a comparação – loja em dia de liquidação. Ninguém quer ser o último. Mas, em vez de uma boa compra, você está em busca de aproveitar ao máximo os exígüos minutos que lhe são dados ao lado do ente amado. De repente você tem limite de minutos para ficar ao lado. Não há dor maior.

Quando ela nos via – sempre ia com minha irmã --, seu rosto de iluminava. Era de novo uma criança, como que vendo seus pais indo buscá-la ao final de um dia na escola – e ela não queria ficar nesta escola! E a gente só queria tocá-la. Dar carinho, ficar perto, sentir.

As conversas variavam muito. De “mal de alzheimer a síndrome da UTI”, os médicos (sempre um diferente, aliás. A cada visita você tem que conversar tudo de novo. E fica rezando para pegar o médico bonzinho, que explica, que parece se interessar – mas todos não deveriam ser assim caramba??) tentavam explicar a sua confusão mental. Ela contava histórias que não existiam, não podiam existir (não?...), como da festa que os enfermeiros faziam lá e da mulher que foi enterrada, além da bendita japonesa que ela vivia dizendo que tinha chegado quase morta, com véu. Outras vezes estava triste, chorando, querendo ir embora, perguntando quando ia sair.

Mas a dor, a dor mesmo é ir embora. É ter que dizer adeus. E deixá-la lá por horas, muitas horas, a noite toda. Nenhum filho deveria ver a mãe na UTI. A gente chegava a querer que ela estivesse meio dopada, que não tivesse consciência do que estava vivendo, para sofrer menos. E ficar boa mesmo só quando já fosse sair. Depois de vermos a esperança dela sair em “24, 48 horas” se esvair por duas, três vezes, paramos de esperar pela alta. Ou melhor, paramos de ter expectativa pelo dia em que ela sairia. Mais um mecanismo para sofrer menos.

Mas chegou a alta. Como tudo chega na vida. “Tudo dá certo no fim. Se não deu certo, é porque ainda não chegou ao fim.” Não sei de quem é essa frase, mas que ela é consoladora lá isso ela é. Chegou a alta. E fomos embora. De novo de ambulância. Era sempre eu que ia com ela na ambulância.

Ela foi comigo também, eu era adolescente, na praia. Tinha passado mal e fomos de ambulância da Praia Grande para Santos. Lembro dela conversando comigo, tentando me animar quando passamos sobre a Ponte Pêncil: “Olha filha, estamos sobre a ponte”. Eu sempre tinha medo de passar sobre a Ponte Pêncil. Sim, eu estava ruim, mas ouvi ela dizer isso. Percebi seu sofrimento em querer me ver bem, em tentar saber se lá no fundo do meu mal estar eu estava bem, de alguma forma.

Sim, passamos sobre a Ponte. A Ponte que sempre me deu medo.

Continuo com medo, mãe. E a Ponte continua lá. Talvez tenhamos que passar sobre ela de novo um dia, espero que não. Só sei que hoje gostaria que não fosse tão tarde (são 2 horas e 13 minutos da manhã de Sexta-feira, 7 de outubro de 2005) para eu poder te ligar, te ver, te dar um beijo. Farei isso ao acordar.

Te amo, mãe.