COM QUE ROUPA?
“Com que roupa a gente vai ao enterro de nossa mãe?”
Esta era a frase que ficava na minha cabeça naquele domingo, enquanto me arrumava. Como devo me vestir? Preto, como manda o figurino? Não, o dia estava ensolarado; você, mamãe, sempre elogiava minhas roupas. Você não ia gostar de me ver assim. Escolhi uma roupa que tenho certeza que você elogiaria. Roupa quase de festa, ironicamente. Ou de um almoço de domingo. Leve, florida, iluminada. Foi minha homenagem a você, mamãe. Um dia, quando puder rever aquele dia, acho que você aprovará. Me diga. Pois assim saberei se consegui responder, ao menos sem errar muito, à pergunta mais difícil de minha vida: “Com que roupa a gente vai ao enterro de nossa mãe?”.
PERTO DE TI
A gente chora desde que nasce. A rigor, é o nosso primeiro ato, com pequenas variações. E segue chorando vida afora. De alegria, de tristeza, emoção, arrependimento, saudades. Mas nunca tinha parado para sentir que a lágrima muda. São as mesmas gotinhas caindo, seja em que situação for. Mas, pela primeira vez, senti que elas mudam, que elas podem mudar.
Não sei se é a consistência, o gosto, a rapidez com que saem de meus olhos e escorrem pela minha face. Tantas vezes têm feito o mesmo percurso nos últimos meses que acho até que já criaram um caminho próprio, similar a uma linha de ruga, mas muito mais profunda. Na alma.
Depois de muito chorar, de puro desespero, desde que você se foi, querida, um dia chorei diferente. Era a mesma dor, a mesma desolação, o mesmo “não sei”. Mas as pequenas gotinhas desceram de forma diferente. Senti o desespero dar lugar a algo que ainda não sei definir.
Basta pensar em você que elas brotam em meus olhos, pedindo desesperadamente para sair deles, para ganharem a liberdade, para escorrerem livres por minhas bochechas, até serem acolhidas silenciosamente em minha boca. Às vezes, na maioria delas, acato. E as liberto. E dói. Dói o peito, lancinantemente. Como nunca julguei ser possível. E dói. Aí, sinto minhas amigas descendo, escorrendo, minguando. E passa. Porque tem que passar, mãe. Mas apenas momentaneamente.
Talvez um dia minhas lágrimas mudem de novo. Talvez saiam deste estado que ainda não sei definir para uma saudade amorosa. Será? Não quero pensar no futuro. Sei que te quero aqui comigo, como na foto que me olha sorrindo, como você sempre foi. E minhas lágrimas, mamãe, o poder que elas têm sobre mim, de invadir minha alma a cada vez que penso em ti, a este poder não quero me sobrepor. A ele me subjugo. Porque é assim que me aproximo de ti.
DESCULPE
Sempre ouvi muitas histórias de arrependimentos em relação a alguém que partiu. “Se eu tivesse feito isso, feito aquilo...”. Como se esse pensamento amenizasse algo.
Obrigada, mãe, por sempre me entender e fazer com que, hoje, eu tenha o sentimento de ter feito tudo que poderia ter feito em cada situação. A cada telefonema dado, ou não. A cada visita feita, ou não. Você nunca cobrou, você sempre entendeu. Sempre nos entendemos.
Obrigada por isso, mãe.
Mas, sim, tenho um arrependimento. Um único.
Tantas vezes, nos últimos tempos, você tentou ir se despedindo de mim, de nós. Queria me dar um mimo aqui, um lenço ali, aqueles elefantes pro Elmo. Eu nunca quis ouvir. Dizia que era bobagem. Você respondia: “Quando eu for, quem vai ficar com tudo isso?”. Nós ficaremos com tudo, mãe, pois tudo tem você.
Mas eu deveria tê-la ouvido. Eu deveria ter deixado você dizer o que queria fazer, a quem queria dar o que, por que. Nossa, quanto sentimento deixei de receber. Quantas histórias, quantas emoções deixamos de sentir.
Desculpa por isso, mãe. Você deve ter sofrido. Ali, sentindo que estava chegando ao final de sua jornada, querendo fazer certas passagens em vida, e eu ali, negando, mudando de conversa, te silenciando.
Desculpe o egoísmo, desculpe a falta de jeito.
Era muito amor, mãe. Muito amor. E o ser humano, burro que é, imperfeito que é, não foi ensinado a lidar com algumas coisas. A lidar com o amor que vem acompanhado da dor. Desculpe, mãe.
terça-feira, 9 de dezembro de 2008
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