domingo, 11 de agosto de 2019

Freud e Jung: de cartas e sentimentos

Terminei minha longa e prazerosa jornada de vários meses lendo a correspondência completa entre Freud e Jung, 658 páginas. A primeira carta data de 1906. A última, de 1923. A publicação de tão rico material só foi possível a partir de um acordo entre os filhos Ernst Freud e Franz Jung que rezava que as cartas deveriam ser reproduzidas como documentos históricos, sem nenhuma interpretação, para garantir a imparcialidade.
Nesses meses (nem sei mais quantos... O que, aliás, não é relevante.) viajei entre Viena e Zurique, acompanhei relatos de atendimentos, desabafos, testemunhos de viagens, preparações de congressos, desentendimentos e debates entre duas mentes privilegiadas que moldaram um tempo. Vi o emergir, o ápice e a decadência de uma intensa relação. Me emocionei e me identifiquei. Sorri e, sim, chorei. Porque uma viagem no tempo como essa não passa incólume na alma. Permaneci admirando Jung por sua ousadia, espírito livre, vontade de seguir seus instintos e ser fiel a suas crenças. Vi Freud sob outro prisma, sigo observando-o. Mais não me atrevo a escrever. A ousada, aí, seria eu. Prefiro reproduzir alguns trechos que me marcaram, para sempre reler facilmente. Eles mostram a força desses dois gênios. Homens, apenas. Sei que de certa forma estou cometendo uma heresia ao retirar esses trechos do seu contexto. Mas eles me entenderiam. E me perdoariam.

6/12/1906, de Freud para Jung
“Saiba que sofro todos os tormentos que afligem um ‘inovador’; e o menor deles não é a necessidade inevitável de passar, entre meus próprios partidários, pelo excêntrico ou fanático incorrigivelmente auto-suficiente que na verdade não sou. Esquecido com minhas ideias numa solidão tão longa, fui levado, compreensivelmente, a uma confiança cada vez maior em minhas próprias decisões. Nos últimos quinze anos vi-me sem cessar envolvido por preocupações que se tornaram monotonamente exclusivas. (No momento, dedico dez horas por dia à psicoterapia). Isso me conferiu uma espécie de resistência à pressão de aceitar opiniões que diferem das minhas. Mas sempre estive cônscio da minha falibilidade, sempre pensei e repensei sem descanso, por medo de me acomodar às minhas próprias ideias. O senhor mesmo observou certa vez que minha flexibilidade indicava um processo de desenvolvimento.”

“Poder-se-ia dizer que a cura é essencialmente efetuada pelo amor. E a transferência, na realidade, proporciona a prova mais convincente – a única de fato irrefutável – de que as neuroses são determinadas pela história de amor do indivíduo.”

“Espero que continuemos a trabalhar juntos e não permitamos que mal-entendidos se interponham entre nós.”

19/08/1907, de Jung para Freud
“Como de hábito, o senhor acerta em cheio com a acusação de que o agente provocador de meus acessos de desespero é a minha ambição. Mas, em defesa própria, tenho algo a dizer: meu honesto entusiasmo pela verdade é o que me impele à procura de um modo de apresentar seus ensinamentos que se mostre o mais eficaz para a abertura de uma brecha. Não fosse assim, minha devoção incondicional à defesa de suas ideias, bem como minha veneração igualmente incondicional de sua personalidade, estaria fadadas a aparecer sob uma luz extremamente singular – algo que de bom grado evitaria, se bem que o elemento de interesse próprio só possa ser negado pelos muito obtusos.”

01/10/1910, de Freud para Jung
“Vejo que o senhor anda a encarar o trabalho como eu, deixando o caminho óbvio para seguir sua própria intuição. Este é, a meu ver, o procedimento mais correto; para nosso grande espanto, todas as voltas que damos revelam-se mais tarde absolutamente lógicas.”

06/11/1911, de Jung para Freud
“A maioria das pessoas parece se sentir à vontade sob um dominador ou um tirano. Foi por pura preguiça que o homem inventou o poder.”

31/12/1911, de Freud para Jung
“(...) Não nego que gosto de estar com a razão. Afinal de contas, esse é um triste privilégio, já que é conferido pela idade. O problema de vocês, mais jovens, parece ser uma falta de compreensão ao lidar com os seus complexos paternos.”

02/01/1912, de Jung para Freud
“Eu próprio era incapaz, quase sempre malgré moi, de manter-me à distância, porque às vezes não conseguia sonegar a minha simpatia, e, já que esta de qualquer modo existia eu prazerosamente a oferecia ao paciente, dizendo a mim mesmo que, como ser humano, o paciente tinha direito à estima e consideração pessoal que o médico julgasse adequado conceder-lhe.”

09/01/1912, de Jung para Freud
“O ‘venerável velho mestre’ não precisa temer ressentimento de minha parte, particularmente quando tem razão. Não me sinto de modo algum posto de lado, nem me queixo de falta de atenção, como Ferenczi. Nesse aspecto o senhor teria mais direito de queixar-se de mim. No que diz respeito à contratransferência, sou simplesmente um pouquinho ‘refratário’ e indulgente com fantasias peculiares, como experiência (...). Para mim, a regra principal é que o próprio analista deve possuir a liberdade que o paciente tem que adquirir por seu turno; de outro modo o analista terá ou que fingir ignorância ou, como o senhor diz, deixar-se enlouquecer.”

03/03/1912, de Jung a Freud
“Certamente que tenho opiniões que não são as suas quanto às verdades básicas da psicanálise – embora não haja certeza nem mesmo quanto a isso, pois não se pode debater por carta tudo o que existe no mundo – mas o senhor não irá, acho eu, considerar o fato como uma ofensa. Estou pronto para, a qualquer momento, adaptar as minhas opiniões ao juízo de alguém que sabe mais, e sempre estive. Jamais teria tomado o partido do senhor, em primeiro lugar, se a heresia não corresse no meu sangue. Visto que não tenho ambições professorais, posso permitir-me admitir erros (...). Foi isso o que o senhor me ensinou através da psicanálise. Como alguém que é verdadeiramente seu seguidor, tenho que ser corajoso, ainda mais em relação ao senhor.”

05/03/1912, de Freud para Jung
“O fundamento indestrutível do nosso relacionamento pessoal é o nosso envolvimento com a psicanálise; mas, sobre esse alicerce, parecia tentador construir algo mais aprazível, embora mais instável, uma amizade íntima. Não devemos continuar a construí-la?” (...) Ainda assim, se o senhor acha que quer de mim maior liberdade, que posso fazer senão abandonar o meu sentimento de premência quanto à nossa relação, ocupar a minha libido desocupada em qualquer outro objeto e aguardar a minha oportunidade, até que o senhor descubra que pode tolerar uma intimidade maior. Quando isso acontecer, o senhor me encontrará disposto.”

14/11/1912, de Freud para Jung
“Cumprimento-o no seu retorno dos Estados Unidos não mais tão afetuosamente como na última ocasião, em Nuremberg – o senhor conseguiu quebrar-me esse hábito –, mas ainda com considerável simpatia, interesse e satisfação pelo seu êxito pessoal.”

15/11/1912, de Jung para Freud
“Prosseguirei no meu próprio caminho, sem desanimar (...). As pessoas só dão o melhor de si quando a liberdade é garantida. Não devemos esquecer que a história das verdades humanas é também a história dos erros humanos. Assim, é preciso dar ao erro bem intencionado o seu lugar certo. (...) Quanto ao meu trabalho passado, presente e futuro, pretendo manter-me à distância dos complexos mesquinhos e fazer inflexivelmente o que considero ser verdadeiro e correto”.

26/11/1912, de Jung para Freud
“Estou contente por termos podido nos encontrar em Munique, já que foi a primeira vez que realmente compreendi o senhor. Entendi o quanto sou diferente do senhor. Essa compreensão será o bastante para efetuar uma mudança radical em toda a minha atitude. Agora o senhor pode ficar seguro de que não desistirei do nosso relacionamento pessoal. Por favor, perdoe os erros, que não tentarei justificar ou atenuar. Espero que a compreensão que finalmente obtive guie a minha conduta a partir de agora. Estou bastante aflito por não tê-lo conseguido muito antes. Poderia ter-lhe poupado muitas decepções.”

29/11/1912, de Freud para Jung
“Creia-me, não foi fácil para mim moderar as exigências em relação ao senhor; mas, uma vez que consegui fazê-lo, o giro na outra direção não foi severo demais e, para mim, o nosso relacionamento conservará sempre um eco da intimidade passada. Creio que teremos que guardar um suprimento adicional de benevolência um para com o outro, porque é fácil ver que haverá controvérsias entre nós, e um sempre achará irritante quando a outra parte insistir em ter uma opinião própria.”

5/12/1912, de Freud para Jung
“O senhor não deve temer que eu ache impróprio o seu ‘novo estilo’. Considero que nas relações entre analistas, como na própria análise, toda forma de franqueza é permissível.”

18/12/1912, de Jung para Freud
“Posso dizer-lhe algumas palavras a sério? (...) Se o senhor se livrasse completamente dos seus complexos e parasse de bancar o pai para os seus filhos e, ao invés de visar continuamente os pontos fracos destes, examinasse bem a si próprio, para variar, eu então me corrigiria e erradicaria de um só golpe o vício de hesitar em relação ao senhor.”

03/01/1912, de Freud para Jung
“É uma convenção entre nós, analistas, a de que nenhum de nós precisa sentir-se envergonhado por sua própria dose de neurose. Mas alguém que, enquanto se comporta anormalmente, fica gritando que é normal dá ensejo à suspeita de que lhe falta compreensão de sua doença. Portanto, proponho que abandonemos inteiramente as nossas relações pessoais. Não perderei nada com isso, pois o meu único laço emocional com o senhor tem sido há muito um fio delgado – efeito tardio de decepções passadas – e o senhor tem tudo a ganhar, em vista da observação que fez recentemente em Munique, de que um relacionamento íntimo com um homem inibia a sua liberdade científica. Digo-lhe, portanto: tome a sua plena liberdade e poupe-me das suas supostas ‘provas de amizade’.”

06/01/1913, de Jung para Freud
“Acedo ao seu desejo de que abandonemos as nossas relações pessoais, pois eu nunca forcei amizade com ninguém. O senhor mesmo é o melhor juiz daquilo que este momento significa para o senhor. ‘O resto é silêncio’.”

sexta-feira, 2 de novembro de 2018

FUI


Minha geração não nasceu com um computador/tablet/iPhone nas mãos. A infância foi pulando corda, brincando de queimada, batalha naval (no papel), bonecas (de verdade ou de papel), coisas assim. Na faculdade de jornalismo, as matérias ainda eram feitas em máquinas de escrever (manual. Elétrica era luxo). Quando comecei nas agências de comunicação e revistas, as matérias ainda eram compostas via paste-up. As revisões não eram feitas com a praticidade do apertar uma tecla, apagar, corrigir. E sim marcando-se as correções com caneta para o trecho ser reimpresso e colado de novo.

Para além de saudosismo (que tenho com todo orgulho), esse “nariz de cera” (termo do velho e bom jornalismo, quando a gente começa uma matéria literalmente “enrolando”) é pra dizer que ao mesmo tempo que amo o Facebook – por tudo o que me proporciona em termos de relação – e o WhatsApp – por permitir que eu esteja com quem amo instantaneamente – algumas modernidades me incomodam. E muito.

E é aí que entra o FUI que dá título a essa crônica.

Veja a situação: você faz parte de um grupo de amigos no WhatsApp (de AMIGOS. Porque não participo de grupos que tenham pessoas de que não gosto, por óbvio. A vida já é muito complicada para fazermos isso conosco mesmos) e de repente surge uma divergência. É da vida. A vida é feita de divergências. Às vezes a gente lida melhor com elas, às vezes mais apaixonadamente (afinal, somos seres humanos e, portanto, imperfeitos). Mas, lembrando, estamos entre AMIGOS. Então, tudo bem né? (Será?). E aí a conversa pode ficar mais difícil, mais nervosa, mais delicada. Mas estamos entre AMIGOS (né?).

E aí, de repente (é sempre de repente, notem), sua AMIGA decide ir embora, partir, sair do grupo, romper. Até aí, ok, pode acontecer de se querer ir embora. É da vida. A vida é feita de encontros e despedidas, de escolhas. Mas meu chip de fábrica – que é das cordas, da queimada, da batalha naval no papel e do paste-up – aprendeu que um rompimento (seja entre namorados, amantes, irmãos, amigos) deve precedido de uma mínima conversa, uma troca de mensagens, uma ligação, enfim, alguma interação.

Mas aí você lê, de repente (é sempre de repente, notem), um FUI no grupo de WhatsApp. E sua AMIGA (não raras vezes de anos, de uma vida), vai embora. Sem te dar e dar ao grupo a possibilidade de continuar conversando, de evoluir na dificuldade, de buscar esquinas de encontros, de esclarecer o que doeu (sim, eu sei, é difícil falar sobre o que dói. Às vezes é mais fácil tomar uma decisão unilateral).

Então sua AMIGA, com sua verdade unilateral, digita um FUI. Um FUI que é onipotente e que detém a verdade. “Só que não”, como diz a geração atual. Não. Esse FUI encerra uma meia verdade. A verdade do lado de quem foi. Tem sempre a verdade do lado de quem ficou. Mas esta verdade cai no vazio, no desprezo, até. Porque sua AMIGA foi embora. Saiu do grupo. Escolheu excluir você e os demais do grupo de sua vida. Assim. Com um FUI.

Isso também é uma escolha.

É por isso que algumas modernidades me incomodam. Como essa possibilidade digital simples e vã de ir embora tão facilmente. Impondo aos demais o silêncio ditatorial. Já que a pessoa (minha AMIGA) não ouvirá o desdobrar das conversas após o seu FUI, porque saiu do grupo. Escolheu assim, o lado mais fácil de não ouvir o que os outros tinham a dizer após a explicitação da sua dor. Escolheu ir. Com um simples teclar no SAIR DO GRUPO. E deixou anos de amizade ali, no vazio do grupo de WhatsApp.

Enfim, escolhas. O mundo é feito delas. E por isso escolhi escrever uma crônica sobre como me sinto quando isso acontece. E encerro clamando por mais conversas antes do FUI. Para que o FUI, se de fato se der, seja natural. E não um rompimento. Porque a vida já tem muitos rompimentos não escolhidos.

quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Mãe. Teu sinônimo é amor.


10 anos, 10 meses, 10 dias, 10 minutos ou 10 segundos?

Parece que foi ontem. Hoje até. Sua partida. Mas já faz 10 anos, Mãe. A gente pensa que não vai sobreviver. Mas acaba conseguindo. Não sem dor, saudades, pensamentos de “Como seria se você estivesse aqui? O que você me diria nesta ou naquela situação?”...

A dor é tão grande ainda, e sempre, que a gente tenta não pensar, sublima, desvia o pensamento teimoso. Mas isso não é justo. Justo com você, conosco, com nossa história, com nosso amor. Então também me esforço hoje, 16 de agosto de 2018, quando completamos 10 anos da sua partida, em pensar que parece que foi ontem não só esse dia tão sofrido mas também todas as alegrias que vivemos juntas.

Parece que foi ontem que você me incentivou a participar do concurso de redação do jornal de bairro O Parque, que depois de dois anos de tentativa eu ganhei e me valeu a bolsa de estudos para o cursinho do Anglo.

Parece que foi ontem que você foi a Atibaia para ver minha estreia como locutora na Rádio Antena 1.

Parece que foi ontem que você acolheu com tanto carinho o Elmo na nossa vida.

Parece que foi ontem que você comemorava a cada matéria que saía sobre mim nos jornais e revistas e carinhosamente as colocava em cima da lareira para todos verem.

Parece que foi ontem que você vibrava com meus jogos de vôlei e dizia que eu tinha um ótimo saque.

Parece que foi ontem.

Mas estamos no hoje.
E hoje só quero vibrar amor.
Porque foi isso que você ensinou, legou, doou, entregou.

É hoje, Mãe. Será sempre, amada. Até a eternidade, quando nos veremos de novo. Te amo.

domingo, 1 de julho de 2018

Ela virou Luz (em homenagem a minha querida Tia Jane)

Passa. Certamente passará.

Mas dói. Certamente dói.

Um dia, de repente, ou não tanto assim, a presença se faz ausência. A mente não consegue entender, demora pra assimilar. Procura, olha, chama. Mas não recebe resposta. Ainda não. Mas receberá. Quando o tempo necessário da Terra transcorrer um pouco. Quando as inevitáveis tarefas do dia a dia começarem a tomar mais espaço do que a dor, a gente começa a ouvir a resposta. Demora ainda. Mas chega esse dia. Dia em que a gente consegue falar o nome, olhar uma foto, conversar sem chorar. Dia em que as lembranças passam a mais aquecer o coração do que machucar a alma.

Chega esse dia.

Acreditem.

A Pessoa Amada também precisa desse tempo. Porque virou luz. Mas, como em todo renascimento, precisa de tempo. Sempre ele. Dono de nós, amigo, carrasco, conselheiro. O tempo que afaga, acalma, explica, consola. Ela virou Luz. Vai brilhar. Daqui a pouco. Aquecendo o céu e os anjos com seu sorriso fácil. Enviando a nós carinhos em forma de sonhos. Vai brilhar. A cada momento difícil na Terra, nos Natais e aniversários, de vida e de partida. Vai brilhar. E a gente voltará a sorrir.

Acreditem.

Chega esse dia.

Não sem dor. Mas com amor. Hoje é dilacerante, amanhã menos intenso, depois de amanhã, inexplicavelmente vira uma brisa que vem num final de tarde a nos lembrar que a vida continua. Que todos continuamos.

Ela virou luz.

E já brilha lá.

sábado, 9 de junho de 2018

Nós, sós, sóis

Nós estamos sempre próximos, ou nos aproximando. Nós. Família, amigos, colegas do trabalho. Terceira pessoa do plural. Plural que inclui, soma, agrega, reúne. Aquece a solidão, aumenta os sorrisos, oferece um ombro ou um colo. Nós. Uma vogal aquecida por duas consoantes. Um “N” imponente, até certo ponto autoritário. Mas talvez no ponto exato em que sua altitude e atitude dão segurança sem sufocar. E um “s” por excelência sinuoso, matreiro, envolvente, com suas curvas que escondem carinhos e seduções. Nós. Mas há aqueles momentos em que, mesmo tão juntos, estamos sós. Faz parte. Às vezes o plural não é suficiente para o espaço infinito do Eu. E sai de cena o “N” para dar lugar a outro “s”, maiúsculo agora. Como maiúscula muitas vezes é a dor que nos faz ficar sós. Que transforma o Nós em Sós. E tem também aquele momento em dobro. Dos nós-nós. Quando nós nos enroscamos de tal forma que criamos nós. Difíceis de desatar. Um verdadeiro enigma. Como saber onde está aquela parte mais dura que atrapalhou o caminho suave do fio? Do novelo? De nós? Paciência, amor, inspiração. E vamos indo. Uma hora desata. Ou não. Mas vale sempre tentar. Por fim, quando cansados de estarmos sós resolvermos abrir a janela do coração, é possível que um “i” esbelto o suficiente para passar pela fresta pequena que abrimos entre e se esgueire por entre o “ó” e o “s” final. Finalmente criando “sóis”. Sim, porque neste momento de retomada um sol só é pouco.

sábado, 24 de março de 2018

Cadê

O ser humano gosta de rotinas. Ou, ok, eu, um ser humano taurino, gosto de rotinas. Criar vínculos, laços, conhecer pessoas, voltar aos mesmos lugares e ser chamada pelo nome. Gosto disso. Talvez por isso não encontrar a cafeteria, a loja de calçados, a doceria no mesmo lugar de sempre me cause certa nostalgia. Para aonde foram as pessoas que me atendiam? E que entendiam esse meu jeito? As pessoas com as quais conversei, confidenciei, ouvi e falei? As moças simpáticas do Amor aos Pedaços da Zona Leste, que sempre me recebiam quando eu saía da sessão de terapia aos sábados? Que foram solidárias com a minha trombose, que também ficaram receosas com a doença pelo tanto que ficavam em pé? Onde estão? Para aonde foram? Será que lembram de mim? Se foram. Assim como a doceria. Do dia pra noite.
E a minha loja de produtos naturais ali do lado do supermercado? Eu era adolescente, naquela época havia poucas lojas do tipo. Vendiam produtos naturais e as cobiçadas alpargatas, quando as Havaianas ainda nem pensavam em produzi-las. O sentimento aqui foi de uma era se indo. Uma geração, a minha mocidade. Mas cadê também a Brunella, ali perto do Shopping Ibirapuera, quase na frente do Tommy, aquele fliperama badalado que eu nunca fui porque era nova demais? Cadê a casa do meu avô, atrás da Faculdade que a comprou? Foi com ela meu avô, os almoços de domingo com minhas primas. Corríamos pela casa, assaltando escondidas o armário de salgadinhos. Cadê?
Mas tem muito mais que eu poderia lembrar. Os locais, as pessoas, os momentos, chegam e vão. Ficam o tempo que o tempo permite. E vão. Mas ficam também. Na lembrança, no coração, na certeza de que conversas jogadas fora numa doceria não são só conversas jogadas fora. São trocas. E quando a gente troca a gente dá. E recebe. E guarda pra vida. E lembra sempre. Mesmo passando em frente e não vendo mais.

sábado, 21 de janeiro de 2017

O que é ser uma pioneira?
21/1/2017


O que é ser uma pioneira? Pergunta inescapável desde que fui reconhecida pela ONU como uma das 10 SDG Pioneer do mundo em junho de 2016, ano inesquecível. Mas, antes até, veio a avalanche de sentimentos. Da incredulidade (eu estava esperando os vencedores serem anunciados para ver o que era necessário melhorar para o próximo ano) à surpresa, gratidão, aceitação, alegria. E desfrute. Sim, porque aquela semana em NY foi coisa de filme, indo de foto com Ban Ki-moon na Assembleia Geral da ONU a Jantar de homenagem no Cipriani e os incríveis painéis na Times Square.

Mas a pergunta segue: o que é ser uma pioneira? "Palavra usada para descrever alguém que é o primeiro a abrir caminho através de uma região mal conhecida", define um dicionário. Desbravador, descobridor, aquele que prepara os resultados futuros. Bom, tem a ver sim com o que faço em sustentabilidade há quase duas décadas (Jura? Isso tudo?...). Então me sinto um pouco mais confortável nesse belo rótulo, me acomodo um pouco mais dentro dessa "fantasia", consigo carregar um pouco mais esse importante título.

Pra falar a verdade, não sei se Nova Iorque me deixou meio anestesiada, acostumada a me ver no Painel da Reuters ou no meu próprio painel embaixo da loja do M&M (sem deslumbramento, apenas com uma sensação de "é isso então") que foi apenas no Brasil que senti a necessidade de pensar sobre o que tinha me acontecido. De assumir a responsabilidade por essa deferência que recebi. Na verdade, as pessoas me lembram mais dela do que eu própria. Quando me enviam e-mails me nominando e parabenizando; quando meu chefe diz a uma ex-funcionária minha que ela trabalhou com uma das 10 do mundo; quando meu time lindo ou o pessoal do mercado me lembra. Enfim.

Mas, sim, bate uma responsabilidade. Ou aumenta. De olhar pra você, seus gestos, suas falas, seus sorrisos e olhares. E pensar que talvez seu lugar no mundo seja esse. Tentando ajudar a construir um futuro necessário, urgente. Inspirando essa nova geração tão especial com quem tenho o privilégio de trabalhar - Luiza, Rebeca, Luanny, Catarina e Giovanna, obrigada!!. Despertando um novo pensamento no executivo que ainda estava distante do tema. Bolando novos métodos, estratégias, formas, formatos. E sempre junto com a legião de outros pioneiros (com ou sem reconhecimento da ONU, o são) a fazer o mesmo. A lutar bravamente para que a temperatura do planeta não aumente mais do que o aceitável (não me arrisco mais a falar em graus), para que a gente reveja nossos negócios, comportamentos, pensamentos.

Quando estava indo para a COP de Paris, em 2015, tive o seguinte insight sobre mim: "Eu não tive filhos, mas trabalho para deixar um mundo melhor para os filhos do mundo". Talvez seja disso que se trate. Talvez a melhor moldura para este pensamento inspirador seja mesmo aquela noite em Nova Iorque, véspera de retornar ao Brasil, depois de tudo. Sentada na Times Square, embaixo do Painel da Reuters onde minha caricatura rosa de pioneira passava randomicamente. Eu ali, olhando para mim mesma, no local icônico da cidade que nunca dorme, degustando cada segundo daquele momento mágico. Que bom que o Painel era alto, que eu tinha que ficar com a cabeça voltada pra cima a fim de me ver. Pois é a postura que se deve ter neste momento: elevar os olhos para o céu e agradecer.
Singela homenagem aos amigos do Face
21/01/2017

Demorei muito a entrar no Facebook. Achava invasão, não me fazia falta. Mas no meu aniversário de 2014 minha irmã me mostrou, propôs e nele estou desde então. Tá certo que como diz a querida Maria Eugenia, eu "roubo no Facebook", meio que me escondo. Lá é a Sonia pessoal, não a profissional. Meu critério de aceite de pessoas é "quero que esta pessoa me veja em uma foto suada, após um jogo de vôlei?". E, como diz outra querida, a Cleise, não sei como não entrei antes. O Face é jornalismo na veia. O olhar atento, a foto, o post, o retratar o que vejo, o que penso, o que sinto. O compartilhar viagens, sentimentos, sensações.

Há várias coisas que me fascinam no Face. Claro, me reaproximar das pessoas queridas do passado. Pessoas que o Face não deixa passarem. Ficar em contato, saber da vida, das novidades, dos sorrisos, comemorações, viagens, broncas. Saber. O Face não permite que o passado simplesmente passe. Ou, pelo menos, abre uma porta para que os interessados entrem e se sentem de novo na sala de visitas com seus amigos queridos de sempre. Gosto também porque o Face me permite ter perto as pessoas distantes, em outros países, por exemplo. Pessoas queridas de um contato, dois, mas que permanecem por perto porque um dia o foram. Mas o mais fascinante mesmo é como você passa a conhecer melhor as pessoas pelo que postam (ou não), pelo que curtem. Uma verdadeira análise humana.

Por exemplo, as pessoas são generosas. Quando troco foto de perfil é quando mais recebo curtidas e comentários elogiosos. Tenho certeza de que meus amigos no Face sabem o quanto gosto de café. E Vinho. Nessa ordem. E o quanto sou apaixonada por Almond Blossoms de Van Gogh (assim como minha amada prima Terezinha). Que sigo forte nas quadras, mantendo como paixão atual uma das primeiras na minha vida, o vôlei. E, assim como as pessoas me conhecem, passei a conhecê-las mais. E por isso me arrisco aqui com algumas sugestões, ideias, colocações, ilações...

- não sou muito chegada a gatos, mas tenho certeza de que um encontro entre Rosi, Nando, Pat Ayello, Lecia e Maysa seria muito bacana
- reunir a Adriana Lagrotta Leles e a Marina Campelo num jantar daria uma experiência gourmet e tanto
- um dia ainda vou sambar na Vai Vai com a querida amiga (antes da minha irmã, agora minha também) Adriana Bordin
- delícia saber das primas Vanessa e Andreia por aqui
- a inesquecível chefe Angelica está na profissão errada, deveria ser fotógrafa. Assim como Vania Bueno e Pat Palomo, com seus cliques emocionantes
- inspirações sustentáveis unem Camila E. Fernando, Luiza, Rebeca, Luanny, Catarina, De Hills, Regina Padovan
- fico imaginando um papo sobre filhos entre Marita, Monica Espósito, Claudia Sintoni
- a paixão pelo Rio nos aproxima Celso Grecco, xará Sonia Araripe, Flavia Mouta
- educadoras maravilhosas Gabriela Padovan, Adriana Bordin
- viajo junto com Mylene, Gui, Silvinho, Celia Pinheiro
- o humor de Jairo Fogaca e do meu querido irmão me diverte demais
- amigos de sempre Jose Antônio Eiras, Jose Luiz Nascimento, Maga, Ritinha, Celinha, Nando, Andreia loira, Marli, Cleise, Dani Orefice, Sergio Fleury, Flavinha, Lu, Pat Salvatori, Mo Deliberato, Lu Haddad
- carinho que não acaba mais com Terezinha, Leslie, Liliane, Iara, Maria Eugenia, Luizinha, Salas, Marlene
- chamar pra jogar vôlei todas do Açaí e Banespa, com destaque para minha parceira de sempre, Marcia Pereira

E por aí vai... Ah, e tem a turma do silêncio (ou quase), e por isso vou respeitá-las e não nominá-las. Mas moram também no meu coração.

Vivo dizendo que "tenho medo" de tanta tecnologia. Rs. Mas do Face só tenho um sentimento. Agradecimento.
Sobre avançar, parar, sorrir, sentir
21/1/2017

Faz muito tempo. 1990. Londres. Primeira experiência internacional, primeira viagem sozinha, primeiro tudo. Tudo era descoberta. Inclusive atravessar a rua. E a primeira vez que fiz isso na faixa de pedestre, acostumada com a maluca São Paulo, fiquei parada esperando os carros passarem. Mas os carros paravam. Para eu passar. Era só colocar o pé na faixa de pedestre, em qualquer lugar dela. A pontinha do pé, o pé inteiro, não importava, o carro parava. Eu, agradecida, olhava para o motorista e fazia um aceno de cabeça de "obrigada". Aceno em vão, pra ninguém. O motorista não me olhava. Ele não parava para mim. Ele parava para si, para seu costume, para sua educação, para o que sempre lhe ensinaram ("pedestre é prioridade"). Ele parava porque absolutamente era a coisa mais coerente a se fazer: parar o carro para o pedestre atravessar na faixa de... pedestre. Aquilo me marcou, me acostumei, era a dona das ruas. Os carros paravam, eu atravessava. Não mais agradecia, era meu direito. E ponto. Como era meu direito que o ônibus chegasse no horário agendado, que as coisas funcionassem como... diziam que funcionaria.

Back to Brasil. Nem por um minuto, pensei em atravessar na faixa de pedestre acreditando que o carro pararia. Seria atropelada. E xingada. Alguns meses de Londres não me fizeram mudar costumes. Apenas me acostumaram, provisoriamente, ao que deveria ser. Em qualquer lugar do mundo.

Mas, enfim, voltei. Segui anos a fio esperando não ter carro passando para ocupar meu espaço de direito e atravessar na minha faixa, enquanto pedestre. Sim, porque, enquanto motorista, confesso, também não era modelo. Não parava para o pedestre. Sem querer achar explicação -- e já o fazendo -- não lembro de ter crescido com qualquer orientação sobre isso, não lembro de ter aprendido, de forma natural e simples, esse preceito básico da vida urbana. Não lembro. E não desenvolvi, aprendi, incorporei, pratiquei.

Aí, décadas depois chega uma campanha de conscientização na maluca São Paulo para se respeitar a faixa de pedestre. Para se parar ao menor sinal de alguém querer atravessar. Finalmente. E aí eu paro, sempre. Deixo passar. E todos me agradecem. Sorriem. Às vezes correm para não me atrapalhar, como se estivessem abusando da minha paciência. Brasileiro. Eu aceno com a cabeça também e esse pequeno gesto de simpatia mútua colore o dia ("Gentileza gera gentileza" né queridos cariocas?).

E lembro dos londrinos. Os motoristas de lá simplesmente param. Os pedestres de lá simplesmente atravessam. Sem agradecimentos, sorrisos, meneios de cabeça. Pra quê? É simplesmente assim que tem que ser. Invejo em muitas coisas Londres. Mas esse simples fato tão díspare lá e cá me deixa feliz de ser brasileira. Quente, calorosa, gentil (quase sempre). Ok, não nos ensinaram educação de trânsito na escola. E por isso temos hoje que ter campanhas e campanhas de educação, multa. Por outro lado, o aprendizado tardio gerou uma esfera comum de carinho, de compreensão, de "você e eu" podemos nos entender, mesmo que separados por um carro. Adoro parar na faixa para o pedestre atravessar. Adoro quando recebo um sorriso de volta. Penso que o dia dele e o meu ficaram melhores. E acelero o carro quando passam. Só depois que passam.

Ps. para ser fiel a mim mesma, não é verdade que eu nunca parava para pedestre atravessar antes das campanhas. E, como a vida é linda e surpreendente, uma história ilustra isso de forma especial. Estava eu num sábado na Zona Leste, bem fora do meu caminho usual, dirigindo numa rua longa e movimentada. Observo de longe uma faixa de pedestre e um casal com a mulher grávida e um filho pequeno esperando uma chance para atravessar. Ninguém parava. Eu me aproximei, parei e os deixei passar. Quando vejo, é um funcionário meu, sua esposa e filhos, um caminhando e um a caminho. Não são presentes da vida essas sensações?