sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008
Crônica de uma lesão nada anunciada (2006)
Paciente. Incrível como de um dia para outro uma palavra que até então era apenas mais uma no dicionário ganha vida, ganha vivência. E salta do dicionário de forma imperiosa, tornando-se parte do seu dia a dia. Nunca tinha parado para pensar – ou sentir – sobre o significado da palavra “paciente”. Claro, entendia seu significado, como boa aluna que sempre fui, mas nunca tinha sentido seu significado, até sofrer uma lesão na panturrilha direita.
Ser assim tão específica sobre o lugar da lesão – por que dizer “panturrilha” e não só perna? -- também não é acaso. De repente você percebe o quanto faz diferença se a lesão foi no gastrocnêmio, no sóleo, na parte medial... De repente você se torna quase médico, tão ansioso está para sair da condição de paciente. Ser específica sobre o local da lesão é também uma resposta minha às inúmeras vezes em que fui perguntada sobre como estava o problema “no joelho” ou no “tornozelo”. Mas, ok, isso é outra história. As pessoas se acostumaram tanto a me ver lesionada (foram mais de quatro meses), que já nem sabiam mesmo onde tinha sido o problema. Cabia a mim apenas responder: “Não, é na panturrilha”...
Mas voltemos à palavra paciente. Sem recorrer ao rigor dos dicionários, o que me vem à mente sobre essa palavra é alguém que espera, que recebe uma ação de outrem, o agente. E é lá pelas tantas, quando você percebe que o que tem não é assim algo tão simples, que não vai passar com alguns dias de descanso, gelo e antiinflamatório, que a palavra se torna soberana. VOCÊ TEM QUE ESPERAR, SER PACIENTE. Sim, porque a palavra paciente ainda tem essa pegadinha: passa de substantivo a adjetivo rapidamente. Você é paciente – aquele que está na condição de ser tratado, de receber uma ação externa -- e tem que ser paciente – ter calma, esperar.
A pior parte do entendimento dessa condição é a constatação de que não há nada de diferente a fazer. Você não consegue abreviar o tratamento, você não consegue burlar o tratamento, você tem que apenas ser paciente, nos dois âmbitos da palavra. E ambos os âmbitos (como é rica essa nossa língua portuguesa, não? Duas palavras tão parecidas – “ambos” e “âmbitos” – são apenas isso, parecidas, sem maior compromisso e correlação, como tantas outras coisas na vida) têm suas fases.
Ser paciente quando o agente não se preocupa com você, não se dedica à sua recuperação, é o pior dos mundos. Além de você estar doente, quem te trata não lhe dedica atenção e – pior – não tem competência para te guiar no caminho da cura. Neste ponto, entramos no incrível mundo das clínicas de fisioterapia de beira de esquina, ou porta de cadeia, não sei qual é a melhor definição. Mas sei que elas existem. Muitas. E você só percebe que são assim, de novo, quando tem algo sério. Já me tratei e curei em duas delas no passado. Tudo bem, sempre tive a sensação de que os lugares eram apertados demais, com equipamentos velhos demais, de que as pessoas tinham conversas estranhas demais (os fisioterapeutas – ou melhor, as fisioterapeutas, eram sempre mulheres – assumiam o papel de vilões, que iam “judiar” dos pacientes, algo exatamente assim, infantil e numa relação de dominado-dominador que em nada fazia sentido para mim, que queria apenas ficar boa, e logo). Mas não conhecia outro tipo de lugar e, bem, tinha sido afinal indicada para estar ali por um médico ortopedista (essa categoria, inclusive, merece um texto à parte...). Mas desta vez não ia conseguir nestes lugares. Até tentei. E a dor só aumentava. Não podia fazer sentido. É neste ponto da história que começam a chegar os “anjos”. Cleise, o primeiro deles, me indicou o Centro de Reabilitação do Delboni “muito bom e perto da sua casa”. Ela já tinha me dito algumas vezes sobre o lugar. Tinha chegado a hora de ir.
Ok, consegui no Delboni ficar mais tranqüila no primeiro âmbito da palavra paciente. Estava em um lugar de primeira linha, com profissionais atenciosos, muitos recursos. Podia relaxar e receber como boa paciente a ação dos meus agentes de saúde. Mas o tratamento não evoluía. Minha perna – ops, panturrilha – continuava ali, doendo, presa, me segurando enquanto o mundo do vôlei girava lá fora. Alguma coisa estava errada, com a lesão, a tal da “contratura muscular” que tinha sido diagnosticada desde sempre. “Não preciso fazer um exame?”. Nossa, quantas vezes fiz essa pergunta, a vários e diferentes profissionais. E a resposta era sempre a mesma: “Não, isso é uma contratura, você tem que fazer isso mesmo, fisioterapia, exercícios etc.”.
Neste ponto, o segundo anjo da história já estava comigo: Miriam, a fisioterapeuta-amiga-companheira. Lembro bem quando ela começou a me tratar. Foi no meio de uma sessão, quando o fisioterapeuta que tinha feito minha avaliação e estava me acompanhando há uma semana simplesmente sumiu da sala. “De novo, não, pensei. Será que aqui vai ser também um troca-troca de pessoas?”. Não foi. Miriam, uma profissional recém-formada que certamente daria aula em várias feras da profissão, desde aquele momento agarrou a causa da minha cura, e vem se dedicando a ela além do que se espera do seu papel. E isso, tenha certeza, causa no paciente muito mais impacto positivo do que milhões de sessões de ultrasson. Os médicos tinham que entender isso definitivamente: a importância do fator humano no tratamento. A importância de um sorriso, uma atenção, um telefonema. O ser humano é todo emoção. Ainda mais quando se encontra fragilizado, privado de uma de suas condições básicas, no meu caso o movimento.
Resolvi então fazer um exame. Tudo bem, não precisava, todos diziam. Mas faria mal?... No fim, fiz 3. Dois ultrassons e uma ressonância. Do primeiro, a “boa” notícia: “Você não tem nada. Não precisa nem fazer ressonância”. Não era possível. Fui para a ressonância. A essa altura já tinha até voltado a treinar, com calma, e as sessões de fisio estavam bem intensas. A cara do médico que fez a ressonância não era nada boa: “Tem uma lesão profunda, e provavelmente rompimento de fibra”. O quê?...... O segundo ultrasson confirmou. E aí... pára tudo novamente. “Você é louca? Não podia estar treinando. Você não pode fazer nenhum exercício!”. Mas péra lá... não era uma contratura? Não, não era: rompimento no gastrocnêmio medial. Nada de quadra e pelo menos 4 semanas de tratamento.-------------------------------------------------------------------------------------------------------
Não sei se os traços acima passam o sentimento que tive ao ouvir isso. Um vazio, um momento suspenso, um “deixa eu ver se entendi”. E no clube as meninas treinando, formando o time, se preparando para o campeonato. E eu, no meu novo-velho time do Banespa, sem condição de participar disso. Não como eu queria, claro. Da primeira vez que fui ao treino após a notícia, saí dez minutos mais cedo; ficar lá por que se eu não podia jogar mesmo? E fui chorando da quadra para o vestiário. Isso tudo tinha que ter alguma razão, que um dia, espero, eu entenda.
Mas vamos lá, exercitar a segunda dimensão da palavra paciente. Vamos ter paciência, seguir o tratamento, acreditar que “pelo menos agora a gente sabe o que é”. E recomeçar. Talvez pela terceira vez em três meses. Três meses de sessões diárias de fisioterapia no horário de almoço. Anjos neste caminho não faltaram. Como a Anelisa, que providenciou o almoço na minha sala, prontinho todo dia, apenas me esperando. Como a atendente do CDB – clínica em que fazia o ultrasson -- que percebeu minha angústia em tentar marcar um exame quando não havia mais horários e me deu o telefone da supervisora. Exatamente no mesmo momento em que eu pensava em pedi-lo.
Também não faltaram no caminho momentos engraçados, figuras engraçadas. Como o dr. Alexandre, que fazia meu ultrasson. Com suas razões próprias e um certo mau humor que julgo nato, ele não teve pruridos em dizer “Eu trato coisa muito mais séria, tumores, isso é rotina...”. “Na perna de quem tem não parece rotina doutor...”, foi só o que consegui responder naquela posição absolutamente passiva, deitada, com aquele aparelinho revelando a cada passada sobre meus músculos o que seriam minhas próximas semanas. Mas na consulta seguinte, talvez convencido de que minha cura era algo realmente importante para mim, dr. Alexandre foi mais próximo, me deu dicas para a viagem de avião, certificou-se de que eu tinha entendido. Na consulta seguinte, até se lembrou de mim espontaneamente. Bingo!
Outro momento inesquecível foi ter me visto a partir do outro, no caso um dos fisioterapeutas do Delboni. “Vê se não exagera na viagem, porque você é meio esquisita, né? Sente dor e se exercita!”. Como assim esquisita, Wagner? Mas, quer saber? Acho que sou mesmo. Já dizia Caetano que de perto ninguém é normal. Acredito nisso. Tanto que estou aqui, num Domingo, ainda com um pouco de dor, mas escrevendo uma crônica como se já tivesse encerrado o tratamento porque quero voltar às quadras essa semana. Vou voltar, se Deus quiser. Esquisitices, você sabe. Mas o que é a vida senão uma seqüência de momentos estranhos, felizes, tristes e... esquisitos?
Obrigada desde já à minha equipe de anjos do Delboni, liderada pela anja-mor-amiga Miriam: Le (que foi acordado às 4h da manhã pela Miriam porque ele iria me tratar no sábado. Exagero, Le, eram apenas 22h...), Wagner (o fisioterapeuta sambista mais esquisito-engraçado que conheço), Tati (uma graça de atenção, nas poucas vezes em que ficamos juntas), os estagiários-ponta firme Paulinha, Le, Karine e, claro, o onipresente Sazaki, uma referência e uma segurança para os pacientes (Sazaki, vê se vai mais ver os pacientes do horário de almoço!).
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