“Nenhum filho deveria ver sua mãe na UTI”.
Este foi o pensamento que mais marcou todo o período em que acompanhei a doença de minha mãe, nas duas (e, espero, únicas) internações. De um dia para outro você vira adulto – mesmo. Tem que deixar seus medos de lado, buscar forças onde nem sabia que tinha, respirar fundo, rever estereótipos, heróis de infância, mitos e desejos. Você tem que cuidar da sua mãe. Assim, sem aviso, sem preparação, sem ensaio. E é aí que você se vê indo em frente, assumindo, engolindo o choro, CUIDANDO DE SUA MÃE. É a inversão da ordem natural das coisas. É muito difícil. Mas você faz. E vive uma experiência até surreal. Foi como se naquele período vivesse em um mundo suspenso, paralelo, fora do mundo real. Via minha irmã, meu pai, meu irmão, todos meio sem rumo, sem saber como agir, cada um se isolando na sua dor, na sua forma de luta, no seu consolo e refúgio. E ela lá, na cama do hospital, como que esperando toda essa confusão passar, apenas assistindo, uma vez mais ausente, a outra mais próxima, mas igualmente fora de alcance, desesperadoramente fora de alcance.
E foi numa dessas noites em que iria dormir no hospital (Como assim “dormir no hospital”? Como assim “ficar de olho para ver se ela precisa de algo?” Como assim “chamar a enfermeira se o soro sair ou acabar?” COMO ASSIM? Eu não sei fazer isso, EU TENHO MEDO, eu quero que o tempo passe rápido e que meu pai, irmã, irmão cheguem logo...) que tive um diálogo inesquecível com minha mãe. Inesquecível porque até agora não sei definir em que mundo de fato ela estava, em que mundo sua alma estava. Inesquecível porque ela estava sem censura, sem travas; inesquecível pela sapiência, pela profundidade. Inesquecível. Na verdade, foram duas conversas. Provavelmente, a dor não me deixa lembrar com clareza exatamente em que situações se deram, mas isso não tem muita importância. Lembro do conteúdo, da emoção, do momento. E isso certamente basta.
Primeira conversa
Foi numa “troca de turno” entre meu irmão e eu (isso é lá jeito de chamar isso? Mas a dinâmica é exatamente essa. Um fica, outro chega, “rende”, olha com a dor mais profunda do coração para a mãe querida que ficará lá, na cama do hospital, até quando um médico-herói-salvador-deus dê a bendita alta e sigamos todos de volta para a nossa vida). Ela estava acordando e estava reluzente. Sorria como se não estivesse na cama de um hospital, tinha um olhar perdido no teto, como a olhar algo que mais ninguém conseguia ver; como se nada tivesse sofrido, como se estivéssemos um uma praia, um campo, enfim, em um momento feliz em família. Começou a contar do sonho, falava de forma atropelada, juntava os assuntos, mas estava feliz. Meu irmão de um lado da cama, eu do outro, os dois segurando em cada uma das mães (não, Sonia, é “em cada uma das 'mãos'”. Mas escrevi “mães”—será ato falho? Apaguei, mas reescrevi. Sim, naquele momento tínhamos duas mães ali. A de meu irmão, com toda a vida que viveram juntos, anos a mais que eu, com seu filme próprio e exclusivo. E a minha mãe, cujo roteiro certamente era diferente. Quem diz que as mães e os pais não são nem podem ser diferentes deve ter algum problema grave de auto-estima. Ninguém é igual a ninguém, não pode ser tratado igual nem ser gostado igual. É só. Que libertemos as mães e os pais da obrigação de amarem igual!). Então, estávamos um de cada lado, segurando em cada uma das mãos-mães.
Ela conta da sua promessa, olhando fundo para meu irmão: “Eu pedi ao Pai que me levasse quando você estivesse bem, estabilizado...” – e ela não precisou completar a frase, era como se dissesse-pensasse: “E agora eu já posso ir”. E meu irmão, chorando, dizia que “não, ainda falta muito”.
Ela olha para mim e diz que sonhou com sua mãe, minha avó. Eu digo que ela ainda não pode ir; eu ainda nem tive meus filhos para ela conhecer, cuidar... E ela diz que minha filha já está querendo vir, que “virá em nome da minha avó; que eu sou muito parecida com minha avó”. Pai amado, o que isso quer dizer? Que mistérios a vida e a morte encerram? Que mistérios esse momento entre a vida e a morte encerra? Não sei, mas os vi naquele hospital. E disse a ela, naquela hora, depois, não sei mais, que minha filha chamará Isabela, em homenagem às avós: Isolina, mãe dela, e Itália, avó do Elmo. Dois “is” = Isabela. Quando já estava em casa, perguntei a minha mãe se ela se lembrava dessa história dos nomes. Ela disse que não. Mas sei no íntimo de mim que, sim, ela gravou bem essa conversa, mas em um outro pedaço do seu ser. Em sua alma, talvez. Mas ela sabe, sim, ela sabe. E sei que isso a acalentou no hospital. Saber que a Isabela viria um dia, e que ela precisava estar viva para conhecê-la!
Obrigada meu querido Elmo, obrigada minha vida, por me dar essa idéia, por pedir para contar isso à minha mãe. Por trazer isso às nossas vidas. O Elmo não foi ao hospital. Não fisicamente. Mas estava ali comigo, com ela, em cada momento. Como naquela tarde em que saí do hospital e liguei para ele da marginal, dirigindo. Tinha a nítida impressão e sensação de que se voltasse à noite e ela ainda estivesse da forma como a deixei – apática, entregue, sem vida – ela estaria próxima mesmo de seu fim. Pedi a ele que rezasse, que era sério e que pela primeira vez em toda essa história eu estava de fato preocupada. Liguei depois para o médico. Era a primeira vez que falava com ele, era sempre minha irmã que ia às consultas com ela. Que conversa foi aquela? Que médico era aquele? Como uma pessoa com aquela postura pode se chamar de médico? Não vale reproduzir o que conversamos, vale apenas para dizer que a última coisa (deveria escrever “pessoa”, em vez de “coisa”. Outro ato falho?) a que recorremos, confiamos, contamos em todo o processo foi uma pessoa que foi paga, anos a fio, para exatamente cuidar da minha mãe.
E voltei à noite. E ela estava melhor. Fui recebida por minha irmã animada, dizendo que ela já tinha até se levantado. Enfim, aquela noite foi o começo da recuperação. Certamente perdi algo importante que aconteceu naquela tarde. Talvez algum diálogo entre minha irmã e ela, talvez alguma lembrança que a fez querer viver, talvez um sonho, uma visita, um telefonema, talvez Deus. Mas sei que respirei aliviada naquela noite. Passamos o limite do medo, da certeza de que poderia não ter volta. Voltamos. Ela voltou. De onde nunca deveria ter ido de fato.
Segunda Conversa
Este segundo momento foi o oposto do primeiro. Da luz para a tristeza. Da esperança para a revolta. Em comum, a mesma não-censura, apenas. Foi em uma noite que iria passar com ela. Cheguei no começo da noite e estavam no quarto com ela meu pai, meu tio e minha tia. Os três conversavam, TV ligada, aquela conversa que procura ser normal já que nada mais o é. E minha mãe inerte na cama, olhos fechados, dormindo? Eles me cumprimentam, falamos um pouco, se despedem. Despedem-se também da minha mãe, mas ela não responde. Dormindo?
Após aqueles minutos “eu comigo mesma”, em que sei que tenho que me investir da força que sei que não tenho para passar mais uma noite no hospital, apenas eu e ela, cuidando de minha mãe, me aproximo da cama. Pergunto se ela está dormindo. Ela diz que não, mas “que não quer conversar hoje”. Ela sempre conversava muito comigo. Minha irmã por vezes ficava chateada, pois foi a que mais ficou com minha mãe e elas não se falavam tanto assim. Nada lógico, como nada é lógico nesta situação. Mas dói, claro. Como tudo dói nesta situação.
Eu insisto. “Por que não quer falar...?” Aos poucos ela começa a se soltar. E não é ela que está falando ali. É algum pedaço da minha mãe que ficou preso em algum lugar, não vivido em algum lugar, talvez até inexistente mesmo, fruto dos remédios, da dor, da tristeza, não sei. Mas não era minha mãezinha. “Hoje eu descobri quem é o seu pai”. O que??? Que frase é essa meu Deus?... Meu pai tinha passado a noite pela primeira – e última – vez com ela. Foi um erro. Muito difícil para os dois. Se para os filhos já é, fico imaginando para o companheiro que dividiu a vida com ela. Que a conheceu moça, linda, que a conquistou, que a namorou, que a pediu em casamento, que viveu as dificuldades e os prazeres de uma vida a dois, enfim, eles têm uma vida juntos. Nós, filhos, somos fruto dessa vida. Há uma diferença, um mar a separar os sentimentos. E eles se confundiram nesta noite. A ninguém caberá saber e entender o vivido nessas horas, apenas aos dois. A mim, veio o relato, num contexto muito confuso. “Ele é machista. Ficou brigando comigo.” Ali minha mãe era uma criança. Estava marrenta, contrariada. Eles de fato discutiram, tiveram uma noite conturbada. E ela reteve provavelmente da forma mais instintiva possível – algum psicólogo haveria de explicar. Conversei muito com ela, acho que ajudou. Disse o quanto meu pai estava sofrendo, o quanto ele não conseguia vê-la naquela situação, o quanto ele precisava dela bem. Acho que aos poucos fui trazendo-a de volta seja lá de onde ela estivesse.
Falamos de minha irmã também. Disse que minha irmã ficava triste porque minha mãe não conversava muito com ela, apenas comigo. A resposta veio de novo da mãe-criança: “Sua irmã é muito brava, briga muito comigo. Mas ela é boa demais para mim, cuida de mim”.
Falamos de meu irmão, de meu pai. Ela pediu que eu cuidasse deles, que não brigássemos, que eles são muito bons.
Conversamos. Por mais difícil, marcante e estranho que tenha sido esse diálogo, foi um diálogo, ela falou. Um cenário completamente diferente do que encontrei quando cheguei. Minha mãe em posição fetal na cama, quieta. Dormindo? No dia seguinte, minha irmã veio me “render”. Mais para o final do dia, liguei para ela, que estava toda feliz: “Mamãe conversou bastante hoje!”. Deus é Pai! Ela escutou o que conversamos. Em algum lugar ficou gravado e ela reagiu!
A UTI
Assim como nenhum filho merece ver a mãe na UTI, nenhuma UTI merece ser relatada em nenhuma linha. É dor demais. Mas fecha um ciclo. Vamos a ele.
A dor começa nos limites. Você não pode mais ir e vir, ver sua mãe na hora que você quiser e puder. Não, existem os temidos “horários de visita”. Todos os familiares das pessoas internadas ficam lá, no corredor, olhando sem esperança para uma porta. Esperando essa porta se abrir. A porta que separa famílias, temporária ou definitivamente. São olhares cúmplices, dores compartilhadas silenciosamente, o medo. São todos crianças, independente da idade. Fragilizados, sozinhos, com medo. E a porta se abre. A ânsia por entrar lembra – desculpe a comparação – loja em dia de liquidação. Ninguém quer ser o último. Mas, em vez de uma boa compra, você está em busca de aproveitar ao máximo os exígüos minutos que lhe são dados ao lado do ente amado. De repente você tem limite de minutos para ficar ao lado. Não há dor maior.
Quando ela nos via – sempre ia com minha irmã --, seu rosto de iluminava. Era de novo uma criança, como que vendo seus pais indo buscá-la ao final de um dia na escola – e ela não queria ficar nesta escola! E a gente só queria tocá-la. Dar carinho, ficar perto, sentir.
As conversas variavam muito. De “mal de alzheimer a síndrome da UTI”, os médicos (sempre um diferente, aliás. A cada visita você tem que conversar tudo de novo. E fica rezando para pegar o médico bonzinho, que explica, que parece se interessar – mas todos não deveriam ser assim caramba??) tentavam explicar a sua confusão mental. Ela contava histórias que não existiam, não podiam existir (não?...), como da festa que os enfermeiros faziam lá e da mulher que foi enterrada, além da bendita japonesa que ela vivia dizendo que tinha chegado quase morta, com véu. Outras vezes estava triste, chorando, querendo ir embora, perguntando quando ia sair.
Mas a dor, a dor mesmo é ir embora. É ter que dizer adeus. E deixá-la lá por horas, muitas horas, a noite toda. Nenhum filho deveria ver a mãe na UTI. A gente chegava a querer que ela estivesse meio dopada, que não tivesse consciência do que estava vivendo, para sofrer menos. E ficar boa mesmo só quando já fosse sair. Depois de vermos a esperança dela sair em “24, 48 horas” se esvair por duas, três vezes, paramos de esperar pela alta. Ou melhor, paramos de ter expectativa pelo dia em que ela sairia. Mais um mecanismo para sofrer menos.
Mas chegou a alta. Como tudo chega na vida. “Tudo dá certo no fim. Se não deu certo, é porque ainda não chegou ao fim.” Não sei de quem é essa frase, mas que ela é consoladora lá isso ela é. Chegou a alta. E fomos embora. De novo de ambulância. Era sempre eu que ia com ela na ambulância.
Ela foi comigo também, eu era adolescente, na praia. Tinha passado mal e fomos de ambulância da Praia Grande para Santos. Lembro dela conversando comigo, tentando me animar quando passamos sobre a Ponte Pêncil: “Olha filha, estamos sobre a ponte”. Eu sempre tinha medo de passar sobre a Ponte Pêncil. Sim, eu estava ruim, mas ouvi ela dizer isso. Percebi seu sofrimento em querer me ver bem, em tentar saber se lá no fundo do meu mal estar eu estava bem, de alguma forma.
Sim, passamos sobre a Ponte. A Ponte que sempre me deu medo.
Continuo com medo, mãe. E a Ponte continua lá. Talvez tenhamos que passar sobre ela de novo um dia, espero que não. Só sei que hoje gostaria que não fosse tão tarde (são 2 horas e 13 minutos da manhã de Sexta-feira, 7 de outubro de 2005) para eu poder te ligar, te ver, te dar um beijo. Farei isso ao acordar.
Te amo, mãe.
sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008
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