Mãe, estou para escrever este texto desde que tudo aconteceu. Não queria deixar passar muito tempo, não queria esquecer os detalhes. Depois, decidi que deixaria passar o tempo, para sofrer menos, reviver menos, doer menos. Cá estou, talvez no meio do caminho. Ainda lembro de tudo e ainda dói. Mas doerá sempre, melhor escrever. Afinal, devo isso a você. Você que me incentivou a ser professora, você que me animou a me inscrever no concurso de redação que ganhei (depois de três vezes. Persistência também é ensinada...), você que ficou feliz quando eu disse que faria faculdade de jornalismo, você que sempre pedia que eu escrevesse dedicatória nos livros que lhe dava, você que sempre dava mais valor aos cartões do que aos presentes, você, enfim, que sempre escrevia cartas que me faziam e fazem chorar. Devia a você, ao menos, escrever sobre tudo. Você ia gostar de ler e certamente pediria para eu colocar “ali, em cima da lareira”, para que outras pessoas pudessem ler. Estamos na área da Internet, mãe, vou colocar também no meu blog.
Parece que foi ontem. Lugar comum este começo, que se há de fazer? Há certos momentos na vida em que o melhor é ser óbvio, não buscar muitos caminhos, se render. Me rendi, mamãe. Que se há de fazer? “É a lei da vida, é assim mesmo, um dia todos vão, etc....”. Não, não é assim. Não com você. Por isso estou aqui.
Parece que foi ontem. Era sábado e eu me programei como em tantos outros sábados: fazer minhas coisas primeiro e depois ir te ver. Era, sei lá, 2 e pouco. Estava indo te ver. Liguei para o Elmo e disse: “Não quero ir”. Era algo emocional; era claro que eu iria. Racionalmente, me senti cansada. Cansada de te ver cansada, lutando. Emocionalmente, agora eu sei, eu já sabia. Meu querido me respondeu, respondeu àquela Sonia tão criança naquele momento: “Vai lá ver a `vovó` (a gente carinhosamente às vezes te chamava assim, acho que você também sabe disso. Do que você não sabe, mãe?). Um dia ela vai ter que ir embora e você vai ficar muito triste, mas eu vou te abraçar e te beijar”. Quantos abraços e beijos desde então, mãe. Quantos...
Eu fui. Mas não entrei de cara. Passei direto pela casa. Eu não queria ir. Aí comecei a brigar comigo: “Sonia, o que você está fazendo? Pra onde você vai?”. Eu não queria ir. Dei a volta no quarteirão e a uns 200 metros da casa parei o carro. Sem motivo, sem porquê. Eu não queria ir. Minha bronca desta vez foi pior: “O que você está fazendo aqui parada? Não faz sentido”. Fazia. Agora eu sei. Eu, enfim, fui.
Papai e Mari estavam lá. Luiz viajando. Você deitadinha na sua cama, como nos últimos 15 dias. Cansada. A primeira coisa que me disse: “Eles querem me internar”. Bonitinha... a gente nunca faria se você não o quisesse mãe... Mari foi embora. Ficamos lá. Conversamos sobre a Olimpíada, lembra? Você disse que tinha visto a abertura, o “homem voando”. Falei do Michael Phelps. Disse que você já estava ficando boa e logo mais ia conseguir até nadar. Mas você nem comia. Não conseguia mais. Papai estava preocupado. Você me pediu a sopa Bono, que bom! Fui lá fazer (isso eu sei, ufa!). Te dei um pouco, mas você não conseguia tomar nada quente, eu ainda não sabia disso. Mesmo assim se alimentou um pouco, obrigada... E aí você passou mal pela primeira vez. Estava agitada, não conseguia respirar direito. Enquanto eu tentava te acalmar, passava álcool (a velha e boa fórmula do papai), ligamos para as pessoas. Era sério. Mas você se acalmou, conseguiu ficar um pouco mais conosco, que bom. Obrigada...
Chegaram Mari, Carmo, Tia Jane, Tio Humberto. Ao ver a Carmo, você disse de novo: “Eles querem me internar”. “E você, quer?”— Carmo perguntou (por que também não dei esta `voz` a ela?...). “Não quero. Mas faço o que eles decidirem” – sempre colocando a família em primeiro lugar, sempre procurando amenizar os conflitos.... Mas começamos a falar, muito. Discutir. Tentar encontrar o melhor caminho para você continuar conosco. Quando Carmo me explicou que você não conseguia comer nada quente, fui fazer a sopa fria. Fui ficar com você. Até bati a porta do quarto, desculpa. Você se assustou e me perguntou o que estava acontecendo, lembra? Eu sorri, tentando disfarçar e disse: “Estamos conversando sobre a melhor forma de cuidar de você”. E você olhou para baixo, deu de ombros, como sempre fazia. E disse: “Ainda bem que o Luiz não está aqui”. Entendi o que você pensou. Ele ficaria nervoso com a situação, não é? – Sempre colocando a família em primeiro lugar, sempre procurando amenizar os conflitos... Depois você me disse: “O seu pai é que precisa de ajuda”. Não tenho razão?... Sempre colocando a família em primeiro lugar, sempre procurando amenizar os conflitos...
A sopa. Vá lá que sopa fria não deve ser o mais gostoso, mas queria tanto que você comesse... Se você ficasse mais forte, quem sabe. Era só se fortalecer, voltar a andar, se recuperar... Você tomou um pouquinho, de canudinho. Muito pouco. Pedi por mais. Você não queria. E aí conversamos gostoso, lembra? Te perguntei: “Como você fazia para eu comer quando eu era pequena e não queria?”. “Eu enganava você”, foi a resposta, seguida de um sorriso maroto. “Ah, e agora você é que está me enganando. Toma mais um pouquinho, vai, pela sua caçulinha”. E você tomou, obrigada...
Mãe, os momentos seguintes foram confusos, tristes, corridos. Demos banho em você. No final, você pediu: “Me cobre”. E começou a nos deixar. Começou a passar mal. Lutou ainda, mas estava indo. Segurei firme na sua mãe (ato falho.... escrevi “mãe”, em vez de “mão”. Já fiz isso em outra crônica... E olha que o “o” nem fica tão perto do “e” no teclado...). “Respira tia, respira”. Ela já estava indo, Carmo. Apertando sua mão, olhei para o quadro de Jesus que ficava bem na sua frente. Para o mesmo quadro que, tenho certeza, você tanto olhou ano após ano. E pensei: “Seja feita sua vontade Senhor”. E foi feita. Você nos deu Fé, mãe, nos deu Religião, nos deu Jesus. Ele não iria nos abandonar bem nesta hora, sei que não.
Tanta coisa vem à mente quando relembro o que ocorreu após este momento. Jamais esquecerei, eu sei. Mas não cabe aqui. Queria aqui a lembrança de você comigo, naquele dia. Não sei como prosseguir. Nesta crônica e na vida. Estranhamente não chorei ao escrever, ao contrário do que tenho feito diariamente. Choro, mas peço para que meu choro não atrapalhe o sono reparador em que você está. Sei que não vai.
E os amigos, mãe... Eles são tudo num momento desse. O apoio, o abraço, a presença. Só tivemos tanta gente querida ao nosso lado, mãezinha, porque você nos criou assim. Mérito seu. Você também ia gostar de ver o carinho e aconchego do café, chá e bolo que a Silvinha trouxe. Você gosta tanto dela, e ela de ti. Obrigada, prima, pela sensibilidade naquele momento de dor.
Não sei mais quem me disse isso, no dia seguinte, num dos momentos mais difíceis: “Você foi abençoada. Você a ajudou a fazer a travessia. Agradeça por isso”.
Eu agradeço, mãe. Agradeço, a cada dia, por tê-la como mãe. Mas choro também a cada dia a sua ausência. Porque não faz sentido. Nunca fará. Nem quero que faça, não quero “me conformar”, “deixar o tempo curar”. Não faz sentido tanta dor.
Sim, a vida continua.
Mas com muito menos sentido.
Te amo, mãe.
Até já, querida.
quarta-feira, 24 de setembro de 2008
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