Ele estava sempre lá. Dia após dia, no horário do seu turno, o guarda da rua estava em sua guarita, a zelar pelas pessoas que entravam e saíam de suas casas, guardando-as. Mas ele ia além. Passou a ser caro também aos simples transeuntes ou pessoas que tinham como rotina passar de carro por aquela rua a caminho de seu trabalho, escola, lazer – eu entre elas. Ele estava sempre lá, sorrindo.
Sempre me surpreendeu como ele guardava os carros, as pessoas. Ficava me perguntando se ele sorria e acenava a todos que passavam e esboçavam um gesto em sua direção, conhecidos ou não. Tanto faz na verdade a resposta. Reconhecendo ou não as pessoas, ele as cumprimentava, acenava, dava um sorriso.
Só me apercebi de sua constância, anos a fio, certo dia em que passei pela rua em um novo percurso em minha vida. A rua era a mesma, mas ela me levaria, agora, a uma nova rotina, a um novo destino em minhas manhãs. Passei a ir ao clube duas vezes por semana neste período e tinha que passar pela rua, pela guarita, pelo guarda sorridente. Até então, tinha me acostumado a vê-lo, e receber seu caloroso cumprimento, apenas aos finais de semana. Mas – que surpresa – ele estava lá também pelas manhãs. Mas já fazia tanto tempo... Eu já devo ter trocado de emprego algumas vezes, viajado umas tantas outras, conhecido novas pessoas, me decepcionado com outras, feito dieta, lido livros. E o guarda lá, guardando a rua. Há quanto tempo mesmo?
Puxando pela memória, lembro que quando Arthur, meu sobrinho, era ainda uma criança de colo passávamos por ali e dizíamos “Olha o guarda, faz `positivo`”. E o Arthur, como toda criança sedenta de desbravar novas possibilidades, virava seu polegar para cima no internacional gesto de que algo vai bem, olhava pela janela do carro em direção ao guarda – meu Deus, qual será o nome dele? Nunca pensei nisso... João, Serafim, Antônio? –, sorria, e nosso carro passava. Muito rápido. Segundos suficientes, no entanto, para nosso guarda sorrir, acenar, deixar em nossos corações o sentimento quase surreal de acolhimento em plena cidade de São Paulo. Acolhimento anônimo, o que torna a situação quase fictícia.
Então, fazia muito tempo. Arthur já é quase um adolescente e nosso guarda continua lá, na mesma guarita, na mesma rua, com o mesmo sorriso e aceno – será que o Arthur ainda o cumprimenta?
Certo dia algo me chamou a atenção. Passava novamente pela rua, preparando-me para o tradicional sorriso e sinal de “tchau” que sempre lhe dava. (Sempre mesmo. Lembro-me de quando troquei de carro. E isso em nada alterou nossa troca. O guarda cumprimentou-me da mesma forma, como se enxergasse além do vidro, do insufilm, além das barreiras que o ser humano constrói cada vez mais a fim de se proteger... do que mesmo?). Mas ele não sorriu de volta. Após anos a fio, dia após dia, ele não sorriu. Como ele ousava quebrar essa corrente, esse hábito, esse meu porto seguro? Como assim? POR QUE ELE NÃO SORRIU? Eu não poderia ter lhe feito nada porque, afinal, eu só fazia cumprimentá-lo, sorrir, acenar, só coisas boas. Eu não lhe fiz nada, definitivamente. Mas ele não sorriu. Levei esse não sorriso comigo por várias quadras adiante. Estaria ele doente? – foi meu primeiro pensamento. E ficou lá essa idéia, amortecida em minha mente até o próximo dia, a próxima passada pela rua. E o guarda de novo não sorriu. Era a prova de que algo não ia bem com ele.
Preocupei-me. De repente me projetei em uma cena talvez mórbida, mas interessante. Projetei-me no enterro do guarda. Centenas de pessoas iriam, compartilhando com a família chorosa esses últimos minutos de sua estada na Terra. “Estranho” – pensaria sua esposa. “Não sabia que o (João, Serafim, Antônio?) conhecia tantas pessoas!” – e tantas pessoas diferentes, eu acrescentaria. “Diferentes” era a forma que ela encontraria para definir aquelas pessoas de roupas caras e carros idem que estavam no enterro de seu esposo. Centenas de rostos estranhos a ela, que ali estavam para agradecer a ele por, em sua vida, além de guardar a rua e as pessoas, fazer com que elas guardassem sorrisos, acenos, guardassem a impressão acolhedora de que o típico ambiente de cidade de interior depende mais das pessoas e menos dos lugares. Mas não. Graças a Deus ele não havia morrido.
Ultimamente passei muito pouco por sua rua – sim, a rua certamente era dele. A última vez, se não me falha a memória, ele não me cumprimentou. Estava a conversar com dois outros homens e não me viu passar. Prefiro pensar que ele não me viu passar a pensar que ele havia desistido de cumprimentar pessoas que, afinal, ele nem sabia quem eram e não tinha nenhum compromisso profissional de guardar.
Não gostaria de constatar que ele se decepcionou, se arrependeu, se sentiu bobo por ter doado anos a fio seu sorriso, aceno, afeto. “Não, não foi em vão, sr. João-Serafim-Antonio” – será que algum dia eu direi isso a ele? Pelo sim, pelo não, espero-acredito que ele saiba, no íntimo.
Preciso passar de novo, e urgentemente, pela rua. Preciso ter certeza de que ele está bem e ter de volta seu sorriso. E preciso cumprir a promessa que faço a mim mesma todo final de ano, de levar-lhe uma garrafa de vinho no Natal. Sinto-me, no entanto, estranha ao imaginar a cena de abaixar o vidro do carro e entregar-lhe o vinho, falar algo. Não combina com este contexto. Baixar a guarda, falar algo. Acrescentar proximidade e som a esta cena tira-lhe a magia e o encanto. Mas deixemos isso para próximo o Natal. Por enquanto me contento com o sorriso e o aceno. Espero que ele também.
sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008
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