Sobre avançar, parar, sorrir, sentir
21/1/2017
Faz muito tempo. 1990. Londres. Primeira experiência internacional, primeira viagem sozinha, primeiro tudo. Tudo era descoberta. Inclusive atravessar a rua. E a primeira vez que fiz isso na faixa de pedestre, acostumada com a maluca São Paulo, fiquei parada esperando os carros passarem. Mas os carros paravam. Para eu passar. Era só colocar o pé na faixa de pedestre, em qualquer lugar dela. A pontinha do pé, o pé inteiro, não importava, o carro parava. Eu, agradecida, olhava para o motorista e fazia um aceno de cabeça de "obrigada". Aceno em vão, pra ninguém. O motorista não me olhava. Ele não parava para mim. Ele parava para si, para seu costume, para sua educação, para o que sempre lhe ensinaram ("pedestre é prioridade"). Ele parava porque absolutamente era a coisa mais coerente a se fazer: parar o carro para o pedestre atravessar na faixa de... pedestre. Aquilo me marcou, me acostumei, era a dona das ruas. Os carros paravam, eu atravessava. Não mais agradecia, era meu direito. E ponto. Como era meu direito que o ônibus chegasse no horário agendado, que as coisas funcionassem como... diziam que funcionaria.
Back to Brasil. Nem por um minuto, pensei em atravessar na faixa de pedestre acreditando que o carro pararia. Seria atropelada. E xingada. Alguns meses de Londres não me fizeram mudar costumes. Apenas me acostumaram, provisoriamente, ao que deveria ser. Em qualquer lugar do mundo.
Mas, enfim, voltei. Segui anos a fio esperando não ter carro passando para ocupar meu espaço de direito e atravessar na minha faixa, enquanto pedestre. Sim, porque, enquanto motorista, confesso, também não era modelo. Não parava para o pedestre. Sem querer achar explicação -- e já o fazendo -- não lembro de ter crescido com qualquer orientação sobre isso, não lembro de ter aprendido, de forma natural e simples, esse preceito básico da vida urbana. Não lembro. E não desenvolvi, aprendi, incorporei, pratiquei.
Aí, décadas depois chega uma campanha de conscientização na maluca São Paulo para se respeitar a faixa de pedestre. Para se parar ao menor sinal de alguém querer atravessar. Finalmente. E aí eu paro, sempre. Deixo passar. E todos me agradecem. Sorriem. Às vezes correm para não me atrapalhar, como se estivessem abusando da minha paciência. Brasileiro. Eu aceno com a cabeça também e esse pequeno gesto de simpatia mútua colore o dia ("Gentileza gera gentileza" né queridos cariocas?).
E lembro dos londrinos. Os motoristas de lá simplesmente param. Os pedestres de lá simplesmente atravessam. Sem agradecimentos, sorrisos, meneios de cabeça. Pra quê? É simplesmente assim que tem que ser. Invejo em muitas coisas Londres. Mas esse simples fato tão díspare lá e cá me deixa feliz de ser brasileira. Quente, calorosa, gentil (quase sempre). Ok, não nos ensinaram educação de trânsito na escola. E por isso temos hoje que ter campanhas e campanhas de educação, multa. Por outro lado, o aprendizado tardio gerou uma esfera comum de carinho, de compreensão, de "você e eu" podemos nos entender, mesmo que separados por um carro. Adoro parar na faixa para o pedestre atravessar. Adoro quando recebo um sorriso de volta. Penso que o dia dele e o meu ficaram melhores. E acelero o carro quando passam. Só depois que passam.
Ps. para ser fiel a mim mesma, não é verdade que eu nunca parava para pedestre atravessar antes das campanhas. E, como a vida é linda e surpreendente, uma história ilustra isso de forma especial. Estava eu num sábado na Zona Leste, bem fora do meu caminho usual, dirigindo numa rua longa e movimentada. Observo de longe uma faixa de pedestre e um casal com a mulher grávida e um filho pequeno esperando uma chance para atravessar. Ninguém parava. Eu me aproximei, parei e os deixei passar. Quando vejo, é um funcionário meu, sua esposa e filhos, um caminhando e um a caminho. Não são presentes da vida essas sensações?
sábado, 21 de janeiro de 2017
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2 comentários:
Délicia de texto, até me vi nessas mesmas situações que você tão bem descreveu..
Muito bom, ótima reflexão
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