domingo, 15 de dezembro de 2013

Mandela: a força e o desejo de perdoar – 15/12/2013


Entre a ideia desta crônica e realmente escrevê-la, Mandela se foi. A crônica, agora, vira um misto de ontem e hoje. Das minhas impressões da viagem a Cape Town e as cenas impressionantes de um povo sofrido e feliz – talvez feliz porque sofrido – se despedindo de seu líder, de sua inspiração.

Adorei a África. Ok, a África do Sul. Ok, Cape Town. Mas adorei.

Nunca desejei ir ao continente africano. Já havia tido duas oportunidades anteriores e por algum motivo não acabou dando certo. Mas agora lá estava eu, na South African Airways, a caminho do país que abriga o ponto onde dois oceanos se encontram. Que romanticamente leva o nome de Cabo da Boa Esperança o local que um dia foi Cabo das Tormentas. Talvez neste “rebatizamento” já esteja o incrível dom dos africanos de transformar tormenta em esperança. Funeral em festa, despedida em celebração. Foram assim as cenas de Mandela na tv. Filas e filas de filhos dando adeus ao seu pai. Abençoados pelas crenças de seus orixás, sabem, porém, que o adeus é temporário. Sabem que devem brindar a vida. Cantam, dançam, choram também. “Madiba”, gritam. “Madiba”, veneram. Escolhem nesta hora o nome de batismo, da aldeia, das raízes. Também chamam por “Mandela”. Nunca por Nelson, o nome que lhe foi dado, imposto, para ser mais bem aceito.

Comecei a adorar a África no avião. Nada de comissárias modelos, sem nada fora do lugar, sem um grama a mais em seus corpos longilíneos. Não, mulheres e homens normais. Com seus corpos normais, frutos de uma vida; de uma história que passa longe dos holofotes das passarelas. Pessoas felizes, sorridentes. Sem quebrar o protocolo de tudo que tem que ser dito (apertem os cintos/se houver despressurização da cabine/desliguem seus celulares), o dizem com leveza, com alegria, de forma adoravelmente colorida. A África é colorida. Tons fortes, tons selvagens, tons de um continente desigual.

O Apartheid emerge de cada conversa na África do Sul. Ele ainda está ali, seja nos antigos bairros separados, que ainda carregam esta marca, seja nas elegantes ruas de Cape Town. A cena que o esperto jornalista conseguiu flagrar na fila para ver Mandela pela última vez representa tudo isso: negro e branco abraçados, vendo o homem que deu sua vida para libertar um país partindo rumo à espiritualidade. O negro consola o branco. O branco chora as lágrimas de uma história eterna.

A caminho do Cabo das Tormentas e da Boa Esperança as paisagens são de tirar o fôlego. A ida margeia o Oceano Atlântico e retornamos pelo Índico. Ou será o contrário? Não faz diferença. Dois oceanos, dois mares com suas histórias americanas, africanas ou asiáticas. Tanto faz. É lindo. Profundo, misterioso. Como tudo na África. Naturalmente vou perdendo meu medo cosmopolita de bichos. Ou tento lidar melhor com ele. Macacos, muitos. Ferozes, em cima dos carros, pelos caminhos, à espreita. Elefantes, não os vi. Mas sei que é a terra deles. E lá está minha mãe a me acompanhar, como sempre. Em cada elefante que compro pensando na sua coleção.

Chegar ao ponto mais extremo do continente é uma volta ao passado. Volta ao tempo dos desbravadores, dos conquistadores. O quanto evoluímos desde então. Mas o quanto ainda estamos presos ao passado. As cenas da vida de Mandela que todas as emissoras de tv não param de mostrar comprovam isso. Separações em função da cor da pele. Separações que nascem de corações embrutecidos. Faz tão pouco tempo, meu Deus.

O motorista me fala de Mandela. “As pessoas não querem deixá-lo ir. Mas precisamos deixar. Ele já cumpriu sua missão. Este homem cumpriu sua missão.” E esse motorista, que dirige uma van tão distante da minha casa, numa rodovia que margeia o Altântico -- ou o Índico, não importa --, que está estudando português e arranha algumas palavras, este motorista que me fala de futebol e da Copa no Brasil no ano que vem, este motorista me conta talvez a maior lição de Nelson Madiba Mandela. Ao sair da prisão, após 27 anos dedicados a mudar uma história, a primeira sentença que este Homem diz, após tão longa sentença cumprida em nome de um ideal, é para se perdoar. Deixar o passado para trás. Olhar pra frente. Construir um futuro. Impossível não pensar em Jesus: “Perdoe-os Pai, eles não sabem o que fazem”. Mandela sabia o que fazia. Saiu da Ilha de Robben para se tornar presidente de um povo, ídolo de um continente, exemplo do mundo.

Nunca tinha ido a lugar mais lindo em minha vida. Posso enfileirar: Taj Mahal, Muralhas da China, Torre Eiffel e Paris inteira, o muro agora galeria de arte de Berlim oriental, Londres, as praias brasileiras, nada é tão lindo como a Table Mountain. Uma montanha em formato de mesa no centro de Cape Town. A princípio, se pensa: ok, mais uma montanha que se sobe de teleférico. Ok, mais um ponto turístico. Nada disso. Encontrei as paisagens mais indescritíveis que já havia visto. Que me capturaram e me fizeram ficar ali, horas a fio, simplesmente sentada, apreciando o pôr do sol. Como nunca antes em minha vida. De um lado a cidade, claro. Mas de outro... os oceanos, canyons, pedras. Estonteante. Uma das maravilhas do mundo. Mandela esteve lá, deixou seu recado. Como em tudo.

Assim foi minha degustação da África. Da África do Sul. De Cape Town. Cidade de pessoas que cantam e dançam, ali, na rua, esperando um passageiro para o seu táxi. A quem digo: “Vocês são muito parecidos com meu povo”. Pessoas normais; bonitas porque normais. Pessoas sorridentes, acolhedoras; talvez acolhedoras porque sofredoras. Pessoas que levam nas costas o legado de um povo que viveu separado. Pessoas que viram seu mais famoso presidiário virar presidente de sua Nação. Unir um país. Semear a concórdia, amolecer corações endurecidos. Tornar-se modelo e exemplo de Humanidade.

Claro que ainda há muito a se avançar. Na África do Sul, no Brasil, nos quatro cantos do mundo. Muito ainda para que todos os cabos de tormenta se tornem cabos de boa esperança. Mas enquanto o nome de Mandela for mais do que apenas uma lembrança; enquanto tivermos na alma e no coração a certeza de que é possível um presidiário sair após 27 anos e ter o desejo de perdoar; enquanto paisagens como as de Cape Town nos fizerem simplesmente ficar a admirar, jogando fora o relógio e a racionalidade do dia a dia; enquanto pessoas sofridas sorrirem ainda teremos por que lutar, por que continuar. Celebrando a vida na despedida. Como hoje. Quando Mandela Madiba Nelson finalmente descansará, após uma semana de homenagens. Continue a olhar por nós, Mandela. Continue a nos fazer ter a força e o desejo de perdoar.

2 comentários:

Luciana H disse...

Sonia , adorei a Cronica .
Nem sempre é facil descrever estes sentimentos de uma maneira tão acertada.
A "passagem" do Mandela deixa um vazio neste nosso mundo que precisa cada vez mais de vozes que propaguem o "perdoar e seguir em frente" . Talvez um dos nossos maiores desafios.
Abraço , luciana helfenstein

Regina disse...

Que delícia " ler você " ....viajo...
Beijos querida.
Re