sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Eu quero flores

O ano era 1990. O Muro de Berlim já tinha caído. Ao menos na intenção, na história, nos gestos que correram o mundo de pessoas em cima do Muro, destruindo aquele que por anos a fio separou uma cidade em mundos completamente diferentes. Mas o fato é que em Abril de 1990 o Muro ainda dividia Berlim. Estava lá, frio, cinza, serpenteando aquela(s) cidade(s). Tão comum e onipresente que ao ser indagada por mim onde ficava o Muro a atendente da ferroviária apenas esticou o queixo e disse: “Ali”. Sim, ali, ali fora, bem perto, presente, o Muro.

E, por estes mistérios que a vida desenha a fim de nos provar e ensinar, lá estava eu, sozinha, em Berlim Oriental, por engano (até hoje confundo East com West...). E lá estava ele, o Muro. Minha motivação para incluir Berlim na minha viagem mochila nas costas Europa afora.

Mas eu estava lá, por engano ou não, estava lá. E, também como fruto de um mistério da vida, fui acolhida pelo casal mais interessante que poderia haver em Berlim Oriental. Ele, Peter, um técnico em informática, ansioso pela unificação e suas oportunidades. Ela, Ângela, artista, receosa em relação a como a unificação trataria seu povo, o “lado pobre” de Berlim.

Fiquei apenas uma noite e um dia em Berlim Oriental. Uma Berlim Oriental que ainda mantinha as restrições de ir e vir. Que apenas sabia que este Muro já não representava a barreira e a esperança que sempre foi. Afinal, deu no jornal, saiu na tevê. Ele não tinha mais validade. Mas nas ruas, na casa de Peter e Ângela, o Muro estava lá. A alimentar sonhos e pesadelos. Expectativas e medos. A dividir uma casa, assim como dividiu um povo por anos a fio.

Uma noite e um dia em Berlim Oriental. Uma noite de aconchego no quarto do pequeno filho que estava viajando. Um dia de visita por Berlim, ciceroneada por Ângela. Lembro muito da Torre da TV, com seu restaurante que roda. Lembro dos cinzas das ruas, dos carros antigos, da falta de comércio. À primeira vista, Berlim me pareceu triste, sombria. Pelas mãos de Ângela, descobri que as cores estão no nosso olhar, no amor que dedicamos a alguma coisa, a alguém ou mesmo a uma cidade.

Ângela amava sua Berlim Oriental. E tinha medo de perder sua identidade, suas raízes, seu valor. Mas a ela só cabia, naquele momento, esperar. Os mesmos poderes que construíram o Muro, e impuseram a ocidentais e orientais a convivência com ele, se viram forçados a destruí-lo. Não havia mais espaço na Humanidade para o Muro da Vergonha. Mas, para Ângela, artista que morava em um amplo apartamento de sofás brancos, nada foi perguntado. O Muro foi erguido e derrubado. E ela ali.

Rodamos muito. Eu tinha dinheiro. Havia trocado um bom valor como precaução e não tinha como destrocar por dinheiro ocidental. Já havia comprado o que queria. Ainda havia muito. Quis dar um presente à Ângela. Se era bastante dinheiro para uma mochileira brasileira, imagine para ela, minha amiga alemã. Eu disse que queria lhe dar um presente. Que ela escolhesse o que quisesse. Seria uma forma de agradecer tanta gentileza comigo. Ela, a princípio, nega. Frente à minha insistência, cede. E me leva. Chegamos. E ela diz:

“Quero flores! A casa fica linda com elas”...

Foram muitas flores. Era muito dinheiro. Mas, muito, segundo que lei? Segundo que moeda, segundo que costume? “Gastar tanto dinheiro assim em flores?...”, diria provavelmente o lado ocidental. "Sim, em flores", responderia o oriental. Certamente há adoradores de flores e materialistas cá e lá. Mas o que aprendi naquele dia, com minha amiga alemã Ângela, comprando flores de todas as formas e tamanhos, é que a medida da felicidade está no que nos faz feliz. E isso não se compra, não se mede.

Levamos as flores. E meus amigos me levaram à estação. Peguei o endereço para lhes mandar o café do Brasil. Fiz isso quando retornei, mas nunca obtive resposta. Será que mudaram? Será que se separaram? Será que deu tudo certo após a unificação? Ou não?

Não sei, provavelmente jamais saberei nesta vida. Mas sei que eles moram no meu coração e sempre penso no que vivi lá, na terra do Muro, naquele distante ano de 1990, quando escuto essa música:

“Se algum dia na vida, meu irmão, você de mim precisar, se chorar, saibas que sou seu amigo, junto a ti, podes comigo contar. O mundo dá tantas voltas, e depois, a gente vai se encontrar, a cantar. Quero nas voltas da vida, meu irmão, a sua mão apertar”...

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