Muito maluco. Parada em Doha, Qatar. Perto de Abu Dabi, Iraque... Grafismos que não sei ler mas encantam pela beleza. Mulheres com seus véus pretos a esconder o que talvez nem saibam que tenham. O celular não tem sinal. Tão perto e tão longe ao mesmo tempo.
Roubam-se 6 horas do dia (ou será da noite?). Passamos impunemente para o dia seguinte, como se donos do tempo fôssemos. A mulher ri ao telefone. Não entendo o que ela diz, mas a língua universal da alegria dispensa traduções. Aguardo. Para adentrar a milenar Ásia, a milenar China. Aguardo. Pessoas são pessoas em qualquer lugar. Quando a barreira da língua cai por terra, é a sensação de liberdade que ganha asas. Cidadãos do mundo deveríamos ser todos. A navegar, voar e cavalgar mundo afora sem medo. Passando por mesquitas, muralhas, morros, montanhas.
A mulher passa anunciando as próximas partidas: Madri, Roma, Incheon (onde será que fica Incheon?). Vou tentar tomar chá. Próxima da terra do chá que estou. Meu vôo ainda não aparece no terminal 00:47. Brasil: 18h47. Deve ser logo após Kuwaitt, Vienna, Singapore.
A vida é realmente muito relativa, como o tempo. A trocar do dia para a noite como que dizendo ao homem: “Ok, você construiu aviões que singram os ares, mas sou eu que continuo a ditar as horas... e se o dia escurece ou amanhece do lado de fora da janelinha”.
A mulher cruza comigo no corredor. Totalmente coberta com sua vestimenta preta, só com seus óculos de fora. Eu, rabo de cavalo e a independência ocidental que só tem quem já passou pelo Brasil.
O chá foi servido. Com leite. Claro, estamos perto da China, por tanto tempo dominada – ou influenciada? – pelos ingleses.
Sem celular, sem pessoas. Só a pensar. Redescubro o prazer de escrever à mão. Deixar os pensamentos guiarem a caneta. Chá com leite, bolo. Londres volta à mente. Meu primeiro vôo afora. E quantos depois vieram. Em sua homenagem, MÃE.
Paris, Teerã, Manchester, Vienna... As cidades se sucedem na tela. Pego dois jornais. Um em árabe, outro em inglês. Que agora parece minha língua-mãe. Guangzhou agora apareceu na tela. Depois de Kozhikode (onde fica Kozhikode?) e antes de Zurich. Daqui a 1 hora e 25 minutos. E o celular continua a não me deixar dizer pro meu amor “Estou em Doha!”.
“Você está levando panela de pressão ou bola?”. Acredite ou não, esta pergunta me foi feita no embarque em São Paulo, para Doha. A mulher explicou que lá (aqui?) não tem. Ótima oportunidade para exportação? Ou algo mais profundo? Vale averiguar...
34ºC às 11 horas da noite no desembarque em Qatar. Uma atmosfera úmida, quente, como devem ser os países árabes. Agora o celular pegou. Aonde o homem chegou... conectando pessoas a milhares de quilômetros de distância e separados por fusos confusos (com perdão da piada fácil). “Meu coração até disparou” -- talvez seja a frase mais linda de se ouvir do marido lá longe... só perde para “Eu te amo”. Eu também!
No fone do avião coloco “Imagine”. Será que este mundo imaginado e talvez imaginário um dia se concretize? Aqui, tão perto de terras cercadas por guerras e costumes e lembrando do taxista carioca que adorava Buenos Aires e cantava “O Rio de Janeiro continua lindo...” até nasce uma esperança. Afinal, a raça é um só: humana.
O menu do avião diz “all dishes are prepared according to islamic principles”. O que leva minha alma jornalística a querer saber que princípios são esses – juntamente com a explicação sobre a panela de pressão e a bola.
Acho que é a primeira vez que uso um moleskine com o objetivo original deste caderno de anotações tão famoso. É isso: fazer anotações. Registrar nas suas páginas em branco que são abraçadas por capas duras e elástico sensações, pensamentos, emoções. Porque o que é a vida afinal se não usamos nosso dom (talvez já influenciada por este clima religioso islâmico)? O meu é escrever! Né, MÃE?
1 hora de atraso para sair de Doha. Da China apenas o livro que estou lendo. Quando está chegando perto parece que fica mais longe...
Me rendi a acertar o relógio. Deixei as 21:30 do sábado no Brasil e fui para as 3:30 manhã de domingo a caminho da China. 8 horas de viagem, com horário de mais 5 horas, completando as 11 horas. Ahead. De novo o tempo desafiando meu entendimento.
Essa é boa. Cliquei para assistir “Filmes do Mundo”. Segundo a Qatar Airlines o mundo é German-Spanish-French-Arabic-Italian-Hindi-Malayalam-Korean-Japanese-Chinese-Tamil (ou Jamil?)-Tagalong-Sinhalese e... “Rest of World” -- escrito bem em cima de Salvador no mapa. Vamos ver o que tem lá...
Já estou sobrevoando a China. Café da manhã. 1º chá chinês. Uma espécie de cuia em vez da tradicional (tradicional para quem?) xícara já dá mostras do que virá pela frente. Olho no relógio: 9:30. Chegaremos em Guangzhou por volta de 11:00. Pelas minhas contas o relógio deveria correr 6 horas e lá seriam perto de 17:00. Mas e este tempo aberto e quase sol lá fora? No Brasil voltamos 6 (ou já serão 11 a menos?). Melhor não tentar entender...
A primeira compra na China, aeroporto de Guangzhou: balas pro meu irmão. Deve fazer sentido... Irmão mais velho, homem, bem ao estilo chinês tradicional.
Assistir TV na China é uma experiência sensorial, cognitiva. Você tenta entender o enredo pelas reações faciais, entonação de voz. É incrível como funciona. Quase uma volta no tempo.
O elevador não tem o número 4. 4 significa a morte na China. Por outro lado, 9 é número de sorte.
Uma cena considerada feia, pobre e brega no Brasil é comum em Xiamen, pequena e acolhedora cidade no Sul da China: pendurar roupas para secar em varais na varanda dos apartamentos. Eles querem aproveitar o sol e evitar proliferação de doenças pela umidade. Simples e lógico, como a vida deveria ser...
Pergunto ao meu guia sobre os rituais da morte. São 3 dias de cerimônias. No primeiro, colocam uma foto grande da pessoa com comidas ao redor. E queimam papéis para que a pessoa possa comprar coisas no banco do céu. Queimar papéis é como dar dinheiro para quem se foi. Se não queimar papéis, os mortos virão no sonho pedir dinheiro. No segundo dia, andam pelas ruas com roupas brancas. No terceiro dia, fazem um cavalo de papel para que a pessoa possa se sentar do lado de lá. As músicas são alegres: “A morte é algo triste, mas a gente tenta alegrar”. Carrega-se e enterra-se o ente querido só após 3 dias.
Jade é uma pedra sagrada na China. A pessoa cuida do jade e o jade cuida da pessoa. Bom para a saúde, circulação, sangue. Quanto mais velho, mais valioso. Sinal de nobreza: o imperador usava um cinturão de jade. Quando nasce um filho, coloca-se jade no seu peito. Passa de geração para geração, tem muito valor.
Estas foram as últimas anotações do moleskine. Mas haveria muito ainda por dizer: a Cidade Proibida, a Praça da Paz Celestial, os hutongs, o pato laqueado, o Templo dos Lamas, o Ninho de Pássaros e o Cubo D’água, o show de acrobacias, o Mercado de Seda, o McDonald’s igual, as fábricas de seda, pérolas, jade e cloisonné, os túmulos das Dinastias Ming e ela, claro, ela, a Muralha da China. Me lembra um pouco o Muro de Berlim. Ambos ali, impassíveis, com suas histórias a contar. As Muralhas se estendem por onde os olhos não alcançam. Realmente serpenteiam as montanhas. Muita gente, muitos chineses, principalmente. Difícil subir. Vontade de continuar subindo... Dizem que só se é um homem ou mulher de verdade depois de subir as Muralhas. Vontade de voltar. Talvez em um trecho menos cheio, menos turístico. Vontade de voltar e caminhar por lá. Um sonho de vida realizado não é pouco. Agradeço por isso. E me rendo, pequena e ignorante aos mistérios da China. Rendo-me, apenas.
segunda-feira, 15 de novembro de 2010
sexta-feira, 29 de janeiro de 2010
Eu quero flores
O ano era 1990. O Muro de Berlim já tinha caído. Ao menos na intenção, na história, nos gestos que correram o mundo de pessoas em cima do Muro, destruindo aquele que por anos a fio separou uma cidade em mundos completamente diferentes. Mas o fato é que em Abril de 1990 o Muro ainda dividia Berlim. Estava lá, frio, cinza, serpenteando aquela(s) cidade(s). Tão comum e onipresente que ao ser indagada por mim onde ficava o Muro a atendente da ferroviária apenas esticou o queixo e disse: “Ali”. Sim, ali, ali fora, bem perto, presente, o Muro.
E, por estes mistérios que a vida desenha a fim de nos provar e ensinar, lá estava eu, sozinha, em Berlim Oriental, por engano (até hoje confundo East com West...). E lá estava ele, o Muro. Minha motivação para incluir Berlim na minha viagem mochila nas costas Europa afora.
Mas eu estava lá, por engano ou não, estava lá. E, também como fruto de um mistério da vida, fui acolhida pelo casal mais interessante que poderia haver em Berlim Oriental. Ele, Peter, um técnico em informática, ansioso pela unificação e suas oportunidades. Ela, Ângela, artista, receosa em relação a como a unificação trataria seu povo, o “lado pobre” de Berlim.
Fiquei apenas uma noite e um dia em Berlim Oriental. Uma Berlim Oriental que ainda mantinha as restrições de ir e vir. Que apenas sabia que este Muro já não representava a barreira e a esperança que sempre foi. Afinal, deu no jornal, saiu na tevê. Ele não tinha mais validade. Mas nas ruas, na casa de Peter e Ângela, o Muro estava lá. A alimentar sonhos e pesadelos. Expectativas e medos. A dividir uma casa, assim como dividiu um povo por anos a fio.
Uma noite e um dia em Berlim Oriental. Uma noite de aconchego no quarto do pequeno filho que estava viajando. Um dia de visita por Berlim, ciceroneada por Ângela. Lembro muito da Torre da TV, com seu restaurante que roda. Lembro dos cinzas das ruas, dos carros antigos, da falta de comércio. À primeira vista, Berlim me pareceu triste, sombria. Pelas mãos de Ângela, descobri que as cores estão no nosso olhar, no amor que dedicamos a alguma coisa, a alguém ou mesmo a uma cidade.
Ângela amava sua Berlim Oriental. E tinha medo de perder sua identidade, suas raízes, seu valor. Mas a ela só cabia, naquele momento, esperar. Os mesmos poderes que construíram o Muro, e impuseram a ocidentais e orientais a convivência com ele, se viram forçados a destruí-lo. Não havia mais espaço na Humanidade para o Muro da Vergonha. Mas, para Ângela, artista que morava em um amplo apartamento de sofás brancos, nada foi perguntado. O Muro foi erguido e derrubado. E ela ali.
Rodamos muito. Eu tinha dinheiro. Havia trocado um bom valor como precaução e não tinha como destrocar por dinheiro ocidental. Já havia comprado o que queria. Ainda havia muito. Quis dar um presente à Ângela. Se era bastante dinheiro para uma mochileira brasileira, imagine para ela, minha amiga alemã. Eu disse que queria lhe dar um presente. Que ela escolhesse o que quisesse. Seria uma forma de agradecer tanta gentileza comigo. Ela, a princípio, nega. Frente à minha insistência, cede. E me leva. Chegamos. E ela diz:
“Quero flores! A casa fica linda com elas”...
Foram muitas flores. Era muito dinheiro. Mas, muito, segundo que lei? Segundo que moeda, segundo que costume? “Gastar tanto dinheiro assim em flores?...”, diria provavelmente o lado ocidental. "Sim, em flores", responderia o oriental. Certamente há adoradores de flores e materialistas cá e lá. Mas o que aprendi naquele dia, com minha amiga alemã Ângela, comprando flores de todas as formas e tamanhos, é que a medida da felicidade está no que nos faz feliz. E isso não se compra, não se mede.
Levamos as flores. E meus amigos me levaram à estação. Peguei o endereço para lhes mandar o café do Brasil. Fiz isso quando retornei, mas nunca obtive resposta. Será que mudaram? Será que se separaram? Será que deu tudo certo após a unificação? Ou não?
Não sei, provavelmente jamais saberei nesta vida. Mas sei que eles moram no meu coração e sempre penso no que vivi lá, na terra do Muro, naquele distante ano de 1990, quando escuto essa música:
“Se algum dia na vida, meu irmão, você de mim precisar, se chorar, saibas que sou seu amigo, junto a ti, podes comigo contar. O mundo dá tantas voltas, e depois, a gente vai se encontrar, a cantar. Quero nas voltas da vida, meu irmão, a sua mão apertar”...
E, por estes mistérios que a vida desenha a fim de nos provar e ensinar, lá estava eu, sozinha, em Berlim Oriental, por engano (até hoje confundo East com West...). E lá estava ele, o Muro. Minha motivação para incluir Berlim na minha viagem mochila nas costas Europa afora.
Mas eu estava lá, por engano ou não, estava lá. E, também como fruto de um mistério da vida, fui acolhida pelo casal mais interessante que poderia haver em Berlim Oriental. Ele, Peter, um técnico em informática, ansioso pela unificação e suas oportunidades. Ela, Ângela, artista, receosa em relação a como a unificação trataria seu povo, o “lado pobre” de Berlim.
Fiquei apenas uma noite e um dia em Berlim Oriental. Uma Berlim Oriental que ainda mantinha as restrições de ir e vir. Que apenas sabia que este Muro já não representava a barreira e a esperança que sempre foi. Afinal, deu no jornal, saiu na tevê. Ele não tinha mais validade. Mas nas ruas, na casa de Peter e Ângela, o Muro estava lá. A alimentar sonhos e pesadelos. Expectativas e medos. A dividir uma casa, assim como dividiu um povo por anos a fio.
Uma noite e um dia em Berlim Oriental. Uma noite de aconchego no quarto do pequeno filho que estava viajando. Um dia de visita por Berlim, ciceroneada por Ângela. Lembro muito da Torre da TV, com seu restaurante que roda. Lembro dos cinzas das ruas, dos carros antigos, da falta de comércio. À primeira vista, Berlim me pareceu triste, sombria. Pelas mãos de Ângela, descobri que as cores estão no nosso olhar, no amor que dedicamos a alguma coisa, a alguém ou mesmo a uma cidade.
Ângela amava sua Berlim Oriental. E tinha medo de perder sua identidade, suas raízes, seu valor. Mas a ela só cabia, naquele momento, esperar. Os mesmos poderes que construíram o Muro, e impuseram a ocidentais e orientais a convivência com ele, se viram forçados a destruí-lo. Não havia mais espaço na Humanidade para o Muro da Vergonha. Mas, para Ângela, artista que morava em um amplo apartamento de sofás brancos, nada foi perguntado. O Muro foi erguido e derrubado. E ela ali.
Rodamos muito. Eu tinha dinheiro. Havia trocado um bom valor como precaução e não tinha como destrocar por dinheiro ocidental. Já havia comprado o que queria. Ainda havia muito. Quis dar um presente à Ângela. Se era bastante dinheiro para uma mochileira brasileira, imagine para ela, minha amiga alemã. Eu disse que queria lhe dar um presente. Que ela escolhesse o que quisesse. Seria uma forma de agradecer tanta gentileza comigo. Ela, a princípio, nega. Frente à minha insistência, cede. E me leva. Chegamos. E ela diz:
“Quero flores! A casa fica linda com elas”...
Foram muitas flores. Era muito dinheiro. Mas, muito, segundo que lei? Segundo que moeda, segundo que costume? “Gastar tanto dinheiro assim em flores?...”, diria provavelmente o lado ocidental. "Sim, em flores", responderia o oriental. Certamente há adoradores de flores e materialistas cá e lá. Mas o que aprendi naquele dia, com minha amiga alemã Ângela, comprando flores de todas as formas e tamanhos, é que a medida da felicidade está no que nos faz feliz. E isso não se compra, não se mede.
Levamos as flores. E meus amigos me levaram à estação. Peguei o endereço para lhes mandar o café do Brasil. Fiz isso quando retornei, mas nunca obtive resposta. Será que mudaram? Será que se separaram? Será que deu tudo certo após a unificação? Ou não?
Não sei, provavelmente jamais saberei nesta vida. Mas sei que eles moram no meu coração e sempre penso no que vivi lá, na terra do Muro, naquele distante ano de 1990, quando escuto essa música:
“Se algum dia na vida, meu irmão, você de mim precisar, se chorar, saibas que sou seu amigo, junto a ti, podes comigo contar. O mundo dá tantas voltas, e depois, a gente vai se encontrar, a cantar. Quero nas voltas da vida, meu irmão, a sua mão apertar”...
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