domingo, 11 de agosto de 2019

Freud e Jung: de cartas e sentimentos

Terminei minha longa e prazerosa jornada de vários meses lendo a correspondência completa entre Freud e Jung, 658 páginas. A primeira carta data de 1906. A última, de 1923. A publicação de tão rico material só foi possível a partir de um acordo entre os filhos Ernst Freud e Franz Jung que rezava que as cartas deveriam ser reproduzidas como documentos históricos, sem nenhuma interpretação, para garantir a imparcialidade.
Nesses meses (nem sei mais quantos... O que, aliás, não é relevante.) viajei entre Viena e Zurique, acompanhei relatos de atendimentos, desabafos, testemunhos de viagens, preparações de congressos, desentendimentos e debates entre duas mentes privilegiadas que moldaram um tempo. Vi o emergir, o ápice e a decadência de uma intensa relação. Me emocionei e me identifiquei. Sorri e, sim, chorei. Porque uma viagem no tempo como essa não passa incólume na alma. Permaneci admirando Jung por sua ousadia, espírito livre, vontade de seguir seus instintos e ser fiel a suas crenças. Vi Freud sob outro prisma, sigo observando-o. Mais não me atrevo a escrever. A ousada, aí, seria eu. Prefiro reproduzir alguns trechos que me marcaram, para sempre reler facilmente. Eles mostram a força desses dois gênios. Homens, apenas. Sei que de certa forma estou cometendo uma heresia ao retirar esses trechos do seu contexto. Mas eles me entenderiam. E me perdoariam.

6/12/1906, de Freud para Jung
“Saiba que sofro todos os tormentos que afligem um ‘inovador’; e o menor deles não é a necessidade inevitável de passar, entre meus próprios partidários, pelo excêntrico ou fanático incorrigivelmente auto-suficiente que na verdade não sou. Esquecido com minhas ideias numa solidão tão longa, fui levado, compreensivelmente, a uma confiança cada vez maior em minhas próprias decisões. Nos últimos quinze anos vi-me sem cessar envolvido por preocupações que se tornaram monotonamente exclusivas. (No momento, dedico dez horas por dia à psicoterapia). Isso me conferiu uma espécie de resistência à pressão de aceitar opiniões que diferem das minhas. Mas sempre estive cônscio da minha falibilidade, sempre pensei e repensei sem descanso, por medo de me acomodar às minhas próprias ideias. O senhor mesmo observou certa vez que minha flexibilidade indicava um processo de desenvolvimento.”

“Poder-se-ia dizer que a cura é essencialmente efetuada pelo amor. E a transferência, na realidade, proporciona a prova mais convincente – a única de fato irrefutável – de que as neuroses são determinadas pela história de amor do indivíduo.”

“Espero que continuemos a trabalhar juntos e não permitamos que mal-entendidos se interponham entre nós.”

19/08/1907, de Jung para Freud
“Como de hábito, o senhor acerta em cheio com a acusação de que o agente provocador de meus acessos de desespero é a minha ambição. Mas, em defesa própria, tenho algo a dizer: meu honesto entusiasmo pela verdade é o que me impele à procura de um modo de apresentar seus ensinamentos que se mostre o mais eficaz para a abertura de uma brecha. Não fosse assim, minha devoção incondicional à defesa de suas ideias, bem como minha veneração igualmente incondicional de sua personalidade, estaria fadadas a aparecer sob uma luz extremamente singular – algo que de bom grado evitaria, se bem que o elemento de interesse próprio só possa ser negado pelos muito obtusos.”

01/10/1910, de Freud para Jung
“Vejo que o senhor anda a encarar o trabalho como eu, deixando o caminho óbvio para seguir sua própria intuição. Este é, a meu ver, o procedimento mais correto; para nosso grande espanto, todas as voltas que damos revelam-se mais tarde absolutamente lógicas.”

06/11/1911, de Jung para Freud
“A maioria das pessoas parece se sentir à vontade sob um dominador ou um tirano. Foi por pura preguiça que o homem inventou o poder.”

31/12/1911, de Freud para Jung
“(...) Não nego que gosto de estar com a razão. Afinal de contas, esse é um triste privilégio, já que é conferido pela idade. O problema de vocês, mais jovens, parece ser uma falta de compreensão ao lidar com os seus complexos paternos.”

02/01/1912, de Jung para Freud
“Eu próprio era incapaz, quase sempre malgré moi, de manter-me à distância, porque às vezes não conseguia sonegar a minha simpatia, e, já que esta de qualquer modo existia eu prazerosamente a oferecia ao paciente, dizendo a mim mesmo que, como ser humano, o paciente tinha direito à estima e consideração pessoal que o médico julgasse adequado conceder-lhe.”

09/01/1912, de Jung para Freud
“O ‘venerável velho mestre’ não precisa temer ressentimento de minha parte, particularmente quando tem razão. Não me sinto de modo algum posto de lado, nem me queixo de falta de atenção, como Ferenczi. Nesse aspecto o senhor teria mais direito de queixar-se de mim. No que diz respeito à contratransferência, sou simplesmente um pouquinho ‘refratário’ e indulgente com fantasias peculiares, como experiência (...). Para mim, a regra principal é que o próprio analista deve possuir a liberdade que o paciente tem que adquirir por seu turno; de outro modo o analista terá ou que fingir ignorância ou, como o senhor diz, deixar-se enlouquecer.”

03/03/1912, de Jung a Freud
“Certamente que tenho opiniões que não são as suas quanto às verdades básicas da psicanálise – embora não haja certeza nem mesmo quanto a isso, pois não se pode debater por carta tudo o que existe no mundo – mas o senhor não irá, acho eu, considerar o fato como uma ofensa. Estou pronto para, a qualquer momento, adaptar as minhas opiniões ao juízo de alguém que sabe mais, e sempre estive. Jamais teria tomado o partido do senhor, em primeiro lugar, se a heresia não corresse no meu sangue. Visto que não tenho ambições professorais, posso permitir-me admitir erros (...). Foi isso o que o senhor me ensinou através da psicanálise. Como alguém que é verdadeiramente seu seguidor, tenho que ser corajoso, ainda mais em relação ao senhor.”

05/03/1912, de Freud para Jung
“O fundamento indestrutível do nosso relacionamento pessoal é o nosso envolvimento com a psicanálise; mas, sobre esse alicerce, parecia tentador construir algo mais aprazível, embora mais instável, uma amizade íntima. Não devemos continuar a construí-la?” (...) Ainda assim, se o senhor acha que quer de mim maior liberdade, que posso fazer senão abandonar o meu sentimento de premência quanto à nossa relação, ocupar a minha libido desocupada em qualquer outro objeto e aguardar a minha oportunidade, até que o senhor descubra que pode tolerar uma intimidade maior. Quando isso acontecer, o senhor me encontrará disposto.”

14/11/1912, de Freud para Jung
“Cumprimento-o no seu retorno dos Estados Unidos não mais tão afetuosamente como na última ocasião, em Nuremberg – o senhor conseguiu quebrar-me esse hábito –, mas ainda com considerável simpatia, interesse e satisfação pelo seu êxito pessoal.”

15/11/1912, de Jung para Freud
“Prosseguirei no meu próprio caminho, sem desanimar (...). As pessoas só dão o melhor de si quando a liberdade é garantida. Não devemos esquecer que a história das verdades humanas é também a história dos erros humanos. Assim, é preciso dar ao erro bem intencionado o seu lugar certo. (...) Quanto ao meu trabalho passado, presente e futuro, pretendo manter-me à distância dos complexos mesquinhos e fazer inflexivelmente o que considero ser verdadeiro e correto”.

26/11/1912, de Jung para Freud
“Estou contente por termos podido nos encontrar em Munique, já que foi a primeira vez que realmente compreendi o senhor. Entendi o quanto sou diferente do senhor. Essa compreensão será o bastante para efetuar uma mudança radical em toda a minha atitude. Agora o senhor pode ficar seguro de que não desistirei do nosso relacionamento pessoal. Por favor, perdoe os erros, que não tentarei justificar ou atenuar. Espero que a compreensão que finalmente obtive guie a minha conduta a partir de agora. Estou bastante aflito por não tê-lo conseguido muito antes. Poderia ter-lhe poupado muitas decepções.”

29/11/1912, de Freud para Jung
“Creia-me, não foi fácil para mim moderar as exigências em relação ao senhor; mas, uma vez que consegui fazê-lo, o giro na outra direção não foi severo demais e, para mim, o nosso relacionamento conservará sempre um eco da intimidade passada. Creio que teremos que guardar um suprimento adicional de benevolência um para com o outro, porque é fácil ver que haverá controvérsias entre nós, e um sempre achará irritante quando a outra parte insistir em ter uma opinião própria.”

5/12/1912, de Freud para Jung
“O senhor não deve temer que eu ache impróprio o seu ‘novo estilo’. Considero que nas relações entre analistas, como na própria análise, toda forma de franqueza é permissível.”

18/12/1912, de Jung para Freud
“Posso dizer-lhe algumas palavras a sério? (...) Se o senhor se livrasse completamente dos seus complexos e parasse de bancar o pai para os seus filhos e, ao invés de visar continuamente os pontos fracos destes, examinasse bem a si próprio, para variar, eu então me corrigiria e erradicaria de um só golpe o vício de hesitar em relação ao senhor.”

03/01/1912, de Freud para Jung
“É uma convenção entre nós, analistas, a de que nenhum de nós precisa sentir-se envergonhado por sua própria dose de neurose. Mas alguém que, enquanto se comporta anormalmente, fica gritando que é normal dá ensejo à suspeita de que lhe falta compreensão de sua doença. Portanto, proponho que abandonemos inteiramente as nossas relações pessoais. Não perderei nada com isso, pois o meu único laço emocional com o senhor tem sido há muito um fio delgado – efeito tardio de decepções passadas – e o senhor tem tudo a ganhar, em vista da observação que fez recentemente em Munique, de que um relacionamento íntimo com um homem inibia a sua liberdade científica. Digo-lhe, portanto: tome a sua plena liberdade e poupe-me das suas supostas ‘provas de amizade’.”

06/01/1913, de Jung para Freud
“Acedo ao seu desejo de que abandonemos as nossas relações pessoais, pois eu nunca forcei amizade com ninguém. O senhor mesmo é o melhor juiz daquilo que este momento significa para o senhor. ‘O resto é silêncio’.”